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Filipa Ramos em entrevista: “No Porto tem-se estado a fazer um trabalho no tecido cultural que é bastante único”

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Filipa Brito

A nova diretora do Departamento de Arte Contemporânea da empresa municipal Ágora, Filipa Ramos, regressa a Portugal após duas décadas fora, período em que afirmou uma presença na cena artística nacional e internacional. Escreveu, lecionou e lançou novos projetos, tendo sido responsável pela programação de cinema da Art Basel Film, e integrado a equipa curatorial da 13.ª Bienal de Xangai. Recebeu o portal Porto. na Galeria Municipal, cuja direção artística assume, para uma conversa em que perspetiva o trabalho que pretende realizar, mas também o papel da cultura no combate às alterações climáticas e o impacto da pandemia no sector. Decidir voltar “foi difícil e foi fácil”, admite, sublinhando que “a cidade, as pessoas, o calor real e o calor humano, fizeram com que esteja a sentir que foi a decisão certa.”

Como têm sido os primeiros tempos nas novas funções?
Estou a aprender ainda como a equipa funciona, como os espaços se articulam, porque o Departamento de Arte Contemporânea opera de forma tentacular, tocando diferentes contextos da cidade. Já tinha trabalhado com o departamento, quando o Guilherme Blanc me convidou para cocomissariar a edição de 2019 do Fórum do Futuro, que depois se estendeu a um convite para cocomissariar a edição seguinte, que devido à pandemia acabou por se manifestar na forma de uma publicação. Em paralelo, pude cocomissariar uma exposição, intitulada “Pés de Barro”, aqui na Galeria Municipal do Porto (GMP). Têm sido semanas de adaptação, mas a pandemia e o teletrabalho acabam por estar a meu favor, porque me permitem começar com um ritmo lento e maturar a forma como iremos trabalhar juntos.

Que desafios vê nas funções que abraçou?
Os ingleses têm uma palavra de que gosto muito, que penso que não se traduza perfeitamente em português, que é attunement – sintonia, talvez? – e, para mim, o maior desafio será o de criar sintonias que não sejam eventos pontuais, mas presenças continuadas. Que o Departamento de Arte Contemporânea exista em diversos espaços da cidade, para a cidade, e dialogue com a diversidade da cidade.

O que a fez aceitar este convite?
Sentir que, no Porto, tem-se estado a fazer um trabalho no tecido cultural que é bastante único e excecional. É um enorme privilégio juntar-me e tentar continuar o projeto de qualidade que se tem vindo a desenvolver, seja a nível das artes performativas, do teatro, da dança, do cinema. Há um ambiente de trabalho, um investimento real, mas também emocional e criativo, numa cena cultural, da qual eu tive um enorme desejo de fazer parte, porque é extremamente estimulante e rara.

Uma das minhas ideias é pôr o Porto em diálogo com o que se passa internacionalmente. Não porque o que se faz lá fora é melhor, mas porque o que se faz aqui merece ser descoberto lá fora.

Regressar a Portugal, após duas décadas fora, foi uma decisão difícil?
Foi difícil e foi fácil. Foi difícil, porque o meu centro gravítico não estava em Portugal. Desde muito jovem o meu desejo era conseguir um modo de ir para fora. Consegui ir estudar para Inglaterra e acabei por ficar. Por outro lado, foi muito fácil, porque vim para uma cidade incrível, para um país onde todas as minhas angústias com as alterações climáticas acabam por se frustrar, porque é impossível não andar feliz e ter energia quando estão 17 graus em janeiro. (risos) Foi fácil e difícil. A cidade, as pessoas, o calor real e o calor humano, fizeram com que esteja a sentir que foi a decisão certa.

Quanto mudou o país nestes 20 anos?
É interessante que me faça essa pergunta. Há cerca de um ano, uma autora que eu respeito muito, mas que é cáustica e bastante crítica da cena portuguesa, a Ana Teixeira Pinto, publicou um artigo numa revista inglesa que se chama Afterall, a criticar de forma muito violenta a gentrificação em Portugal, em particular em Lisboa, e a dar uma grande responsabilidade à cena artística por esse processo. Eu achei o artigo extremamente importante, mas ao mesmo tempo não consegui evitar achar que o ponto de vista é quase o de um intelectual de esquerda burguês, que não quer perder os seus privilégios. De repente, chega o estrangeiro, e eu sou pobre e já não posso ir à tasquinha, comer bem e pagar pouco, sem ter que pensar em quanto é que ganham as pessoas. As grandes modificações, que aconteceram sobretudo depois da crise, ligadas ao boom do turismo, tiveram um lado extremamente problemático.

O que pode ser feito para contrariar essa realidade?
Nós estamos a mudar o regulamento do Criatório para que possa distribuir apoios, não somente aos artistas que estão na cidade, mas também aos que trabalham na cidade. Eu tenho um sonho – seria incrível que o Porto conseguisse criar um sistema de rendas controladas para produtores culturais, ao exemplo de Nova Iorque, que ainda tem uma cena artística, apesar da enorme gentrificação, graças a medidas que foram feitas nos anos 1960 e 1970.
Acho fascinante estarmos a viver este momento de transformação, e a cultura tem a capacidade de introduzir um ritmo mais lento, mais suave, num processo que é inevitável, mas que pode ser adocicado, digamos.

Como é que pretende aproximar a população e a arte?
Há muitas populações. Há a comunidade mais estreita de artistas, produtores culturais, público especializado, que tem expectativas estruturadas. Uma das minhas ideias é pôr o Porto em diálogo com o que se passa internacionalmente. Não porque o que se faz lá fora é melhor, mas porque o que se faz aqui merece ser descoberto lá fora, para estimular um diálogo transnacional.
A nível da relação com os públicos mais amplos, tão amplos que é difícil generalizar, a ideia é continuar com as iniciativas que têm sido desenvolvidas pela GMP e criar pontos de diálogo com outros campos disciplinares. A arte contemporânea não existe sem diálogo com o que se passa na ciência, na astronomia, na ecologia, com todos estes discursos transdisciplinares.

O sector cultural não é uma ilha, faz parte da sociedade. A pandemia, criando uma enorme instabilidade, convidou-nos a não assumirmos que tudo o que temos é permanente.

Qual deve ser o papel dos municípios na promoção das artes?
Essa pergunta é mais para o presidente do que para mim. (risos) No fundo, é emancipar sem ser paternalista, e sem ser populista. E esta equação é tão difícil. Há a grande função de estimular e não estupidificar outros públicos, nem achar que o público quer produtos culturais fáceis, simples, ou pouco interessantes.

Como começou a interessar-se pela arte?
Posso dizer, de uma forma muito simples, que sou uma junkie (viciada) por experiências de intensidade, transformadoras. Para mim, o evento não é uma coisa que se faz e desaparece. A arte tem esta possibilidade de deixar traços, criar uma necessidade – por isso digo junkie. Encontrei a realização deste desejo de ter experiências de intensidade na relação com a natureza, que é uma paixão constante, e também com a arte, que tem a capacidade de tocar nos sentimentos e mexer no nosso corpo: dar-nos arrepios, lágrimas, sorrisos...

Tem centrado a sua investigação nas relações entre cultura e ecologia. São dois domínios indissociáveis?
O pensamento artístico e o pensamento ecológico são metodologias complementares de criar e compreender o real. Com o crescimento da consciência das alterações climáticas, os temas ligados ao ambiente tornam-se bastante importantes nos discursos artísticos contemporâneos. Fico assustada ao ver que os miúdos não estão a aprender a amar a natureza, estão a aprender o luto pela natureza, antes sequer de terem um amor por ela. Os discursos artísticos podem acentuar a consciência do estado do planeta.

E que impacto podem ter no combate às alterações climáticas?
A cultura ainda tem muito para fazer. Se formos ver a pegada ecológica de uma feira de arte como a Art Basel, em que depois vão estar exibidas obras sobre a poluição, é absurdo, para não dizer hipócrita. Entramos em paradoxos: o ideal seria não fazer nada, mas não faz sentido. A cultura e a arte contemporânea têm uma função, como em muitos outros campos de transformação – e nós estamos a viver anos de enormes mudanças de paradigma.

Como avalia o impacto da pandemia no sector cultural?
O sector cultural não é uma ilha, faz parte da sociedade, e a pandemia veio dar-nos um estaladão, para o bem e para o mal. Criando uma enorme instabilidade, convidou-nos a não assumirmos que tudo o que temos é permanente. Este tumulto reverbera nas necessidades de transformação social que se manifestam. Portanto, este lado negativo é também um lado positivo: abana-nos e dá-nos consciência de que somos frágeis, e que esta fragilidade é algo que nos une. Há outras questões: reconhecer a importância da saúde mental, repensar a nossa existência, a forma de colaborarmos e sofrermos juntos.