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Memórias Invictas: "É estranho ouvir falar como se não se tivesse passado nada [com o 25 de Abril]", diz Siza Vieira (2.ª parte)

  • Paulo Alexandre Neves

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Guilherme Costa Oliveira

Na segunda e última parte da entrevista ao Porto., o arquiteto Álvaro Siza Vieira revela como viveu o seu dia 25 de Abril de 1974, aproveitando para criticar quem considera que, hoje, Portugal está igual ou pior que nessa altura. Fala das suas obras na cidade, sublinha que sempre disse ao seu filho e neto - ambos arquitetos - que não lhe seguissem os passos e do mais importante prémio mundial de arquitetura, o Pritzker, que recebeu em 1992. "Não é para dar pulos, achar que estou consagrado e fechar a loja. De maneira nenhuma", confessa.

Como viveu o 25 de Abril?
Fui acordado por um amigo às 4 horas. Liguei o rádio e percebi o que se passava. Não era difícil perceber, com os golpes falhados que tinham ocorrido antes. Já se estava à espera. Era evidente que ia acontecer algo. Nesse dia, vesti-me, para aí às 7 horas, e vim para a Praça, onde já havia uma montanha de gente, que subia em direção à Câmara Municipal. Até que se começou a ouvir uns tiros. Encostei-me a um prédio. Um deles passou muito perto de mim. Então, corajosamente, disse: 'vou para casa'. E assim passei esse dia.

Passados 50 anos que avaliação faz?
Foi fundamental, com todos os problemas que existem, criticáveis, sobretudo para quem não assistiu ao Portugal de antes. Há uma grande diferença. A seguir vieram situações de algum impasse nas conquistas, mas é um processo que está em curso, com direções díspares. Neste momento, é estranho ouvir falar como se não se tivesse passado nada. Como se o Portugal de hoje fosse igual ou pior do que era antes. Isso tem uma explicação: já existe pouca gente que tenha assistido a esses momentos e também a interesses que têm pouco a ver com a solidariedade. Não é um problema só em Portugal, mas que está espalhado por toda a Europa.

Preocupa-o o futuro?
Já não terei grande futuro para estar tão preocupado, mas em relação aos meus filhos, aos meus netos, sim.

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Voltemos à Arquitetura. O que é a "Escola de Arquitetura do Porto"?
No essencial é uma equipa de professores, com determinadas orientações, que trabalham num edifício. A ideia de que é algo como um estilo está absolutamente errada. A diferença em relação ao tempo em que estive na escola [de Belas Artes] é que esta era pequena, com poucos estudantes, com um grupo docente, que, em média, tinha mais dez anos que os alunos, com uma ideia comum de renovação. Uma escola de tendência. Atualmente, há várias tendências dentro da Faculdade de Arquitetura. Falar de uma Escola de Arquitetura do Porto, como às vezes ouço dizer, é errado. O meu neto fez o estágio na Alemanha. Outros fazem nos Estados Unidos. No meu tempo, isso era impensável. Há uma abertura que significa uma inserção na Europa e no mundo. A própria atividade dos arquitetos já não é adstrita às suas cidades. Essa abertura são, agora, as oportunidades de trabalho.

Ainda se lembra da sua primeira obra na cidade do Porto?
Foi o SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local). Foram os estudantes que me convidaram. Eles conheciam a Associação de Moradores, que era junto à escola [São Vitor, no Bonfim], e queriam trabalhar nisso, mas precisavam de um arquiteto. Alguns deles conheciam-me e convidaram-me.

Sente-se esquecido pela cidade?
Nunca tive muito trabalho na cidade, a não ser, nos anos 60 [do século passado], quando fui convidado pelo arquiteto francês Robert Auzelle para fazer um plano para a Avenida da Ponte. Já tinham sido feitos 40 projetos, todos reprovados em Lisboa. Estudei as razões por que eles tinham sido reprovados: porque incluíam uns viadutos que tapavam à vista total sobre a Sé. Foram todos reprovados à exceção de um, do arquiteto Fernando Távora, que também tinha sido convidado. Mas não foi considerado porque não era rentável para a Câmara. O que fiz, no fundo, foi uma mudança no conceito. Na altura, na Europa dava-se prioridade ao trânsito. O Auzelle foi muito importante na modernização da cidade, do ponto de vista do urbanismo. Está um pouco injustamente esquecido. O plano foi aprovado pela Câmara, mas, depois do 25 de Abril, o executivo da altura ignorou-o.
Fiz depois um outro plano, em 2001 [para a Capital Europeia da Cultura]. Entreguei-o na Câmara. De resto, tenho a Faculdade de Arquitetura porque os meus colegas, sobretudo o Fernando Távora, acharam que deveria ser eu a fazer o projeto. Tirando isso, tenho um edifício da Boavista e mais outro [uma clínica] e duas recuperações na Foz. E não me estou a lembrar de mais nada… Para mim, o Porto, como lugar de trabalho, não existe. Nos últimos anos, o meu trabalho é na China, Coreia do Sul e Japão. Fui lá 12 vezes. Ainda tenho lá trabalho, mas agora não posso lá ir por razões óbvias.

Falar de uma Escola de Arquitetura do Porto, como às vezes ouço dizer, é errado

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O arquiteto Manuel Aires Mateus [Prémio Pessoa em 2017] afirmou, numa entrevista, que é "a partir da obra de Siza Vieira que se lê a história da nossa arquitetura". Não há maior elogio.
É muito simpático, mas muito exagerado. Há outros arquitetos, com obra e com grande influência na evolução da nossa arquitetura. Basta citar o Eduardo Souto Moura, os próprios irmãos gémeos Mateus e outros de grande qualidade, já firmada em Portugal e lá fora.

Esta é uma frase sua: "As minhas obras passam por emoções". Atualmente, a Arquitetura mostra essas emoções?
Umas vezes tem, outras não. Em toda a parte há arquitetura como um fazer mecânico, muito assente na questão do dinheiro, do lucro. Mas há também muito arquitetura de qualidade.

Ter sucessão nesta área, com o seu filho e neto, deixa-o feliz?
Não. Recomendei-lhes uma quantidade de vezes que não seguissem Arquitetura. O meu filho ainda começou pelo curso de Letras, mas, ao fim de um ano, disse-me: 'pai, quero ir para Arquitetura'. O meu neto foi a mesma coisa, de maneira que as minhas recomendações não resultaram. Em ambos vejo talento e capacidade, mas, agora, o arranque é muito difícil. Foi sempre difícil, mas agora é radicalmente difícil.

Outros tempos...
Quando comecei, o normal de um arquiteto recém-formado era fazer uma casa para um familiar ou um amigo da família, que sabia que o rapazinho tinha acabado o curso de Arquitetura e, por amizade, era convidado para fazer o seu primeiro projeto. Era muito comum. Levava muito tempo até chegar à obra pública. Agora, é mais difícil, particularmente, porque os concursos para as obras públicas já não são feitos entre arquitetos, mas entre construtores. Não é aquele conceito, já de si problemático, de construção de projeto. Isto faz parte de uma cruzada dos que consideram os arquitetos como um incómodo. Com as instruções que vieram da União Europeia, isto estende-se por toda a Europa. Olhe, tenho uma obra recente na Albânia, porque o país ainda não entrou nos mecanismos europeus. Já não há direitos de autor. Se alguém quiser pegar numa obra de um arquiteto e entregar a outro basta escrever uma carta a comunicar ao primeiro. Já não há possibilidade de controlo do que é a construção porque os fiscais são contratados pelos donos de obra. Os concursos estão sujeitos a recomendações que se traduzem em entregar ao preço mais baixo. Se for por entrega direta só se pode pagar 20 mil euros, o que não dá para fazer um projeto, em termos de despesa, de uma casa. Existe uma coisa chamada Simplex que é a coisa mais complicada que já vi, baseada na informática. Nem todas as câmaras atualizaram os seus sites. E por aí fora.
O que eu sei é que em Itália, se é possível pior que em Portugal, está ainda por acabar um projeto que entreguei há 43 anos. Estou a fazer, juntamente com o arquiteto Eduardo Souto Moura, o metropolitano na Praça do Município, em Nápoles (Itália). Estamos a trabalhar nesse projeto há 25 anos e ainda não está pronto porque, entregue aos mais barato, este recebe a primeira tranche e entra em falência. Isto é a regra.

Recomendei-lhes [ao filho e neto] uma quantidade de vezes que não seguissem Arquitetura

O Pritzker é o corolário de toda a sua paixão pela arquitetura?
Como qualquer prémio não é o corolário. Arquitetos em todo o mundo há em grande qualidade. Quando calha a um português… aconteceu por um conjunto de circunstâncias. Depende de muita coisa: de quem é júri, as tendências maioritárias nesse júri, etc. Um prémio desses satisfaz-me muito, eventualmente, abre possibilidade de trabalho, mas é uma coisa que acontece. Não é para dar pulos e achar que estou consagrado e fechar a loja. De maneira nenhuma.

Aos 90 anos não deixa de vir, todos os dias, aqui, ao escritório.
Enquanto puder venho e até mais do que vinha porque, agora, não posso viajar. Agora, a minha vida é casa-escritório-casa.

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