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"O Porto não deixa que brinquem com ele"

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O Padre Américo Aguiar é uma das pedras que compõem um dos ícones da cidade. Numa longa entrevista à jornalista Elisabete Felismino, do jornal online eco, explica que "o Porto não deixa que brinquem com ele" e fala do atual momento económico da cidade. A entrevista está publicada na edição em papel do jornal Porto. e é hoje reproduzida no Portal de Notícias do Porto.

Padre Américo Aguiar, 43 anos de idade. Presidente da Renascença e da Irmandade dos Clérigos e sobretudo um apaixonado pelo Porto. Uma cidade cosmopolita e que não deixa "que brinquem com ela", diz. Mas sobretudo uma" cidade de pedra com gente de carácter". O Padre Américo, um conversador nato, benfiquista e sócio do f.c.p. e que agora vive em Lisboa de segunda a sexta diz ainda que o Porto é uma cidade onde impera a inovação. Elogia o papel da Academia na relação com o mundo empresarial e reconhece que, a exemplo da relação que todos temos com Deus, há "piquinhos" em que se nota que todos os agentes da cidade trabalham em rede e as coisas acontecem. Trata Rui Moreira, o presidente da Câmara, por "Burgomestre" e reconhece que ele é uma "voz visível, audível e respeitada" na luta contra o centralismo. Diz que o Espirito Santo ainda não lhe deu a solução para conjugar a movida noturna da baixa com a necessidade de descanso dos habitantes daquela zona, mas adianta: "a movida é um sintoma da vida da cidade e nós não podemos perder isso". 

Tem um palco privilegiado sobre o Porto. Como é que olha hoje para a cidade? 

Com muito orgulho. Costumo dizer que quando subimos aos Clérigos olhamos sempre para o burgo, para o Paço, para a Sé para o bairro da Sé e penso com muito orgulho que "tudo começou aqui", mesmo com as cicatrizes da história. E quando hoje fazemos essa visita ficamos muito orgulhosos porque o burgo acabou por dar à luz uma cidade de pedra, com gente de carácter que faz a diferença e que ao longo da história fez sempre a diferença. Qualquer portuense ou qual- quer pessoa de bom senso que nos visite e leia a nossa história vê que para além daqui ter nascido o nome Portugal, daqui nasce também muito daquilo que faz a diferença em momentos críticos da história. E quando ouço dizer que as mudanças revolucionárias têm sempre o "ninho" no Porto fico todo orgulhoso. 

Se calhar é por isso que se diz que os portuenses são resilientes às crises... 

Sim, e mesmo nestas últimas crises económicas e financeiras a gente vê... e quando dizemos Porto podemos dizer Porto de uma maneira alargada. Eu nasci em Leça do Balio, Matosinhos, mas quando alguém nos pergunta, fora da cidade, de onde somos dizemos todos que somos do Porto e isso não acontece em todas as geografias as do país. Noutras geografia as do país não há esta facilidade de alargar a identidade de um povo. O Porto, as suas gentes têm sido e nesta última crise económica... um dos segredos do Porto e do Norte é esta rede, uma malha muito fina de coresponsabilidade, de partilha mútua. Vamos aqui pelas nossas freguesias, pelas nossas paróquias e vemos que facilmente a vizinhança e a proximidade faz com que haja uma espécie de rede que é tecida por todos. 

E é também aí que nasce o espírito de empreendedor dos portuenses? 

Os portugueses costumam desenrascar- -se ao último minuto, mas no Porto é mais do que desenrascanço... é inovação. E nós vemos isso quando olhamos para a nossa Academia. Eu gosto sempre dos Reitores da Universidade do Porto, cada um no seu estilo, mas uma vez, numa sessão qualquer, o Sr. Professor Marques dos Santos diz-me assim, o senhor sabe que aquela garrafa de gás levezinha foi criada pela nossa Universidade. E isso é um orgulho tão grande e é pena que o cidadão comum, porventura, não tenha noção disso. Esta Academia foi capaz de descobrir uma relação, que devia ser óbvia desde sempre, mas que às vezes não é, que é uma Academia de braço dado com o setor empresarial. 

Mas considera que os agentes da cidade, a autarquia, a academia e os agentes económicos, têm esse braço dado? 

Eu acho que tudo isso é sempre como um electrocardiograma, é um pouco como a nossa relação com Deus, tem "piquinhos", e às vezes há momentos da cidade em que se nota que todos os agentes da cidade estão em rede, todos a puxar para o mesmo lado e quando se faz isso as coisas acontecem, seja em setores específicos da vida de cidade, seja em constrangimentos, em catástrofes, quando a cidade é capaz, quer na Igreja, quer nos órgãos autárquicos, na Academia, nas empresas somos capazes de fazer o melhor. E temos reparado que nos últimos tempos, com a distância que nos permite ver um bocadinho melhor, a Universidade tem sido exemplar no que diz respeito, a usufruir e alavancar e tem sido sensível a esse trabalho conjugado e cruzado com as várias realidades, nomeadamente com as empresas e não é à toa que a própria cidade cria um ninho de startups e que é referência. Quando vejo jovens das mais diversas áreas a serem capazes de investigarem e a serem capazes de melhorar e de alterar o nosso dia a dia, acho que isso é brilhante. E a nossa academia tem sido muito notabilizada nessa categoria. 

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"E a seguir, surgem os Velhos do Restelo. Que isto é perigosíssimo e vamos morrer todos, vamos ficar diluídos, descaracterizados. E eu acho que isso é um disparate." 

Mas quando lhe perguntava sobre a cidade, estava a pensar na mudança que existe na cidade, por exemplo, na última década. 

Sim, hoje o Porto é uma cidade diferente. É diferente porque é muito mais cosmopolita. Fui capelão da Misericórdia do Porto nos últimos dez anos e a minha vivência da rua das Flores não tem nada a ver. Em 2005 tínhamos uma rua mais ou menos degradada, com uns estabelecimentos de uns senhores simpáticos, sem ninguém a passar lá, um comércio decadente, a certa altura há o projeto da rua passar a pedonal e as obras... o que gerou muita discussão, como é costume, e a certa altura uma torre de babel deitada, agora percorremos a rua das Flores e ou- vimos todas as línguas, e com dificuldade português, o que é divertidíssimo. 

O que me está a falar é sobretudo turístico, acha que a grande diferença da cidade é sobretudo ao nível turístico? 

Aquilo que mais se nota no dia a dia de quem percorre a cidade é a presença turística mas depois não podemos colocar de lado aquilo que dantes não era visível e que agora é: a reabilitação urbana. As Cardosas foram a grande intervenção no coração da cidade, depois o Corpo da Guarda, Mouzinho da Silveira, diversos projetos da Porto Vivo, eram assim uns "pioneses". Mas agora não, agora todos estamos convencidos. Do cimo dos Clérigos a cidade está como que semeada de gruas... o Professor Vieira de Carvalho dizia que uma cidade sem gruas é uma cidade morta... 

Ainda sobre o turismo. É benéfico para a cidade? 

O turismo é benéfico e não deve haver esse papão, o homem do saco não faz sentido nenhum. Aliás também ouço essa conversa em Lisboa. Primeiro as cidades não são de dimensão comparável. O meu Porto é pequenino, é um miminho, é querido; Lisboa é uma coisa assim grande, é diferente, mas tenho ouvido essa conversa. Durante muito tempo andamos a discutir que era importante a aposta no turismo e os eleitos fizeram o que puderam, a Associação Comercial do Porto, a Câmara, os privados, cada um fez o que pôde, depois a certa altura há o pormenor que faz a diferença, as "low-cost". Começam a vir os turistas e começamos a ver os vários agentes: os cafés, os restaurantes, os hotéis, os Clérigos, todos a terem a prova que as coisas estavam a correr bem. E a seguir, como sempre acontece nestas coisas, surgem os Velhos do Restelo. Que isto é perigosíssimo e vamos morrer todos, vamos ficar todos diluídos, descaracterizados. E eu acho que isso é um disparate. Aliás, quando há dias ouvi dizer que se liga o turismo com a questão da desertificação do centro histórico... 

Que já estava desertificado... 

Exatamente. Quando alguém afirma isso... eu fui seminarista no coração da Sé e sei o que aquilo já era. E quando ouvia o nosso Reitor Dr. António Taipa, agora nosso Bispo Auxiliar, a falar do que era do bairro da Sé e o centro histórico todos dizem que houve uma grande quebra quando se tiraram as pessoas de lá para os bairros sociais que entretanto foram criados... com promessas de regresso. E foi isso que fez a grande retirada de população. Associar o turismo à morte do centro histórico acho que não é sério. Aliás eu pergunto o que é que nós fizemos, ou não fizemos, para recuperar o centro histórico do Porto. Eu lembro-me de ouvir falar de vários projetos, instituições da igreja, fundações do Estado, projetos de luta contra a fome, contra a pobreza e há 40 anos que se ouve isso. Das duas uma, ou os projetos não têm tido sucesso ou alguma coisa está mal. 

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"Do cimo da Torre dos Clérigos a cidade está como que semeada de gruas? O Professor Vieira de Carvalho dizia que uma cidade sem gruas é uma cidade morta..." 

Como é que olha para a reabilitação urbana, acha que está a ser bem feita? 

A Misericórdia recentemente avançou com um projeto no âmbito do programa reabilitar para arrendar, o que é de saudar. É de saudar que a misericórdia tenha criado condições para olhar para o seu património e ser capaz, neste centro histórico, de criar condições para reabilitar edificado que estava abandonado, em ruínas, e colocá-lo ao serviço da cidade seja para alojamento, seja para turismo, seja para serviços. No início havia um choque entre aquilo que eram os interesses dos proprietários e aquilo que era a vontade da Câmara e aquilo que pudesse ser o interesse do mercado. Este cruzamento não corria lá muito bem, certamente que todos queriam o melhor, mas se calhar não era o melhor do bem comum, mas era o melhor para cada um dos agentes. Mas eu penso que isso se desbloqueou. Agora o que também se nota é que nós, por exemplo, aqui há uns tempos quisemos comprar um edifício aqui perto e os preços estão proibitivos. 

E esse preços proibitivos nota-se depois no comprar e arrendar casa. 

Exatamente. Depois é uma bola de neve e isso sim afasta os cidadãos. Lá está, é quando o interesse de cada uma das partes não é o bem comum. Aliás, a Porto Vivo 

abriu um leilão para venda de edifícios e referia que na última tinha tido 1400 e tal propostas, o que significa que há procura por preços menos especulativos. E lembro-me que na rua das Flores havia ali uma papelaria que fechou. A câmara fez uns apartamentos e fez um leilão e teve grande adesão de casais novos. 

Como é que olha para o fenómeno da movida noturna da cidade? 

A movida é divertida. Se olhar para 1995, não se passava nada, aliás é engraçado ver como na nossa cidade, a movida se tem movido. Lembro-me de ser nuns armazéns na zona industrial, depois Ribeira, e agora está aqui na baixa. É outra vez uma faca de dois gumes porque nós queremos que a cidade tenha vida, mas depois a cidade tem vida e queremos dormir. Nós queremos turismo, mas depois temos turismo e ?ai Jesus" o turismo. Mas eu compreendo perfeitamente aqueles poucos habitantes nesta zona que querem dormir e isso não é compatível com a movida noturna. Não sei como é que se concilia uma alegre, saudável e simpática convivência noturna com alguns excessos com aquilo que é o descanso merecido de pessoas aqui até já com alguma idade. Confesso que não sei qual é a solução, sei que é um problema, sei que a autarquia tem tido várias plataformas de diálogo e discussão para descobrir a pólvora mas ainda não ouvi o estouro da pólvora descoberta. Todos nós queremos a cidade com vida, agora confesso que o Espírito Santo também ainda não me soprou. Outra coisa é aquilo que me preocupa e que tem a ver com a educação dos jovens para com o álcool. Nunca defendi que se deve proibir o que quer que seja porque é um verdadeiro disparate. Às vezes o que me preocupa é que quando vou a casas de famílias fazer visitas vejo os jovens a beberem água e sumos e depois cruzo-me com eles e estão com garrafas de litros de não sei o quê ou com "shots", com teor de álcool ?upa upa'. Preocupa-me quando uma sociedade sabe desse problema mas não o resolve e cria um hospital de campanha em que os meninos chegam, embebedam-se, atingem o coma alcoólico são tratados e vão para casa semanalmente, ora isto não é salto civilizacional, isto é um disparate. 

O divino Espírito Santo soprou-lhe para reabilitar os Clérigos. 

Sim, definitivamente. Às vezes quando penso nisso até me emociono um pouco porque tudo aconteceu no tempo certo. 

Como é que surge a presidente da Irmandade dos Clérigos? 

Estávamos em fevereiro de 2011. A Irmandade estava já há algum tempo em coma, parada, tínhamos aqui um sacerdote, o padre Valdemar, que foi o reitor da Igreja dos Clérigos durante décadas e que fez um trabalho magnifico. Os Clérigos eram muito concorridos no que dizia respeito às celebrações, o padre Valdemar era professor do Colégio Alemão e havia muita convivência. Foram tempos muito bonitos no que diz respeito à marca dos Clérigos como local de culto. A certa altura o edifício começa a entrar em ruína, todos os espaços estavam em ruínas: a zona hospitalar, os serviços administrativos e a zona residencial. Em fevereiro de 2011 vim a uma assembleia geral da Irmandade e o Sr. Dom Manuel Clemente tinha recomendado que os padres fossem capazes de reabilitar a Irmandade. É uma Irmandade de Padres, todos os sócios são padres e portanto que era uma pena que a Irmandade estivesse morta, em coma. Nessa assembleia geral, um colega com mais idade faz uma lista de última hora. E ganhamos, era uma lista única, encabeçada por mim. Eu tinha vindo cá quando andava na escola primária e tinha ficado chocado porque de facto o ex-libris da cidade e uma obra de referência estava num estado miserável. 

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"O Porto não é uma cidade como as outras, até na sua história é especial. O facto de ter sido uma cidade episcopal até 1406 mostra que nós somos o Burgo e o nosso presidente de Câmara é o Burgomestre. Não é um presidente de Câmara como outro qualquer. Digo isto carinhosamente, mas o Porto é uma cidade especial." 

E foi aí que resolveu recuperar o ex-libris da cidade. 

Nesses dias começou o workaholic a trabalhar, das primeiras coisas que z foi ir falar com a diretora regional da cultura, da altura, a arquiteta Paula Silva. Tive o aval dela que, contudo, me disse que dinheiro não havia. Ainda assim, disponibilizou-se a ajudar oferecendo o projecto a realizar pelo arquiteto João Carlos, que já tinha trabalhado em Tibães. Fui então falar com o Dr. Artur Santos Silva, presidente do BPI. Ele veio visitar os Clérigos e ficou muito impressionado e disse-me: "avance, se houver problemas, estou cá para ajudar, até fazemos uma vaquinha com empresários". Senti-me respaldado, o que estava em cima da mesa era fazermos à nossa custa com um empréstimo bancário. Depois fui falar com o Mário Ferreira, o nosso Midas. Fui almoçar com o Mário Ferreira e tenho pena de não ter guardado a toalha de papel por- que pude constatar como é que o Midas... 

Porque é que lhe chama Midas? 

Porque os projetos onde ele põe a mão têm retorno. Durante o almoço fez-me várias perguntas, e reparei como é que é "este animal económico" porque ele rapidamente dizia se fizer isto assim e assim isto rapidamente duplica, triplica... e até hoje nada do que ele disse não foi aplicado e não teve razão. 

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"Comecei a ficar convencido de que isto ia avançar, depois houve uma visita em que me cruzei com o Dr. Rui Moreira, na altura presidente da Associação Comercial do Porto que também disse "Padre Américo o que precisar".

Tinha o apoio da cidade... 

Comecei a ficar convencido de que isto ia avançar, depois houve uma visita em que me cruzei com o Dr. Rui Moreira, na altura presidente da Associação Comercial do Porto que também disse "Padre Américo o que precisar". Aliás, temos um livro que editamos na altura com o apoio da ACP. O Dr. Rui Moreira alertou-me ainda para o facto das obras do Palácio da Bolsa terem sido feitas com a ajuda do Jessica. Devo até contar uma história caricata. Eu não conhecia o programa Jessica e fiquei convencido que era o nome de uma senhora, a dada altura o presidente da Câmara apresenta-me a Maria do Carmo, responsável pelo pro- grama e eu ainda hoje lhe chamo Jessica. (risos) Com estas conversas fui ganhando coragem. Eu sou muito institucional e acho que a nossa cidade o que tem são as figuras da cidade, aliás quando a rainha D. Leonor manda a carta para a cidade para criar a misericórdia destina a carta aos homens bons da cidade. Eu como sou muito institucional comecei a ver que o bispo ok, o Dr. Artur Santos Silva, o nosso senador, ok, o Midas ok, o presidente do senado (ACP) ok, o provedor da Misericórdia ok, comecei a sentir-me confortável... 

Faltava a Comissão de Coordenação da Região Norte. 

E finalmente vou à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região Norte, na altura presidida pelo Eng. Duarte Vieira, e que foi um pessoa fundamental em todo este processo. O Eng. Duarte Vieira estava numa situação de doença grave e a certa altura diz-me "Padre Américo já não há QREN mas vamos ter que fazer aqui um reajuste de coisas, estamos a chegar ao fim formal do QREN, há muitas instituições que tiveram candidaturas aprovadas mas que não utilizaram dinheiro, no entanto isto cruza-se com autárquicas e portanto muitas autarquias vão deixar até ao fim que é para não assumirem o ônus de não ter usado pelo que eventualmente vai chegar a uma altura em que haverá aqui uma verba. É a única possibilidade". 

E ficou à espera? 

Não, voltei a reunir com a arquiteta Paula Silva e decidimos avançar. O arquiteto faz o projeto, a Irmandade encomenda as especialidades. Estávamos nisto quando a certa altura liga-me o Eng. Duarte Vieira a dizer que havia a possibilidade de se concretizar, mas tinha que estar tudo pronto e isso podia ser um problema. Ao que respondi: "Está tudo pronto". 

Lá está o sopro do Espírito Santo... 

Exatamente... correu tudo bem. Entretanto as coisas precipitam-se todas, e temos que agradecer porque a santa burocracia se fosse aplicável estávamos tramados, mas na altura era preciso a conjugação de várias entidades, o Jessica estava resolvido, os secretários de estado Castro Almeida e Barreto Xavier foram magníficos. Era preciso que a Câmara anuísse, o Dr. Rui Rio fez também as diligências necessárias e, no final do processo, surpreendeu-me muito simpaticamente com um apoio de 150 mil euros.

E quanto tempo demorou? 

No dia 23 de dezembro de 2013 está- vamos na igreja dos Clérigos a assinar o financiamento para a recuperação dos 

Clérigos, o empréstimo do Jessica, o contrato com o empreiteiro, o contrato com a fiscalização e a arrancar umas tábuas simbólicas já com o Dr. Emídio Gomes na presidência CCDRN porque o Eng. Duarte Vieira entretanto faleceu. Todos os intermediários da CCDRN foram e são espectaculares. As obras começaram nos Reis de 2014 e lembro-me que a 23 de dezembro com todos os senadores da cidade presentes, durante a assinatura dos protocolos, ter dito que no dia 12 de dezembro de 2014 às 12 horas estaríamos a fazer inauguração. Ficou tudo a pensar que eu era doido. 

12 de dezembro é a data que se comemora a inauguração do edifício. 

Foi por causa da data de 12 de dezembro de 1779. Dia da bênção e dedicação da igre- ja. Eu também faço anos nesse dia, aliás também o senhor Prof Marcelo Rebelo de Sousa. O que é certo é que graças a Deus tudo correu muito bem. 

Já recuperou o investimento? 

A inauguração aconteceu mesmo a 12 de dezembro de 2014, vamos fazer três anos e o que dizemos é que o retorno foi muitíssimo rápido. A cidade do Porto já não é moda, a cidade ficou moda. Aliás, este último prémio de melhor destino turístico é uma maravilha. 

Estão a facturar um milhão de euros? 

O ano passado facturamos à volta de um milhão de euros, o que esmaga qual- quer das previsões e isto significou mais ou menos 50% de partilha e optamos por um filão que eu acho que é o mais transversal da sociedade, decidimos apoiar os voluntários hospitalares. E ainda todas aquelas entidades que são de comum aceitação como Fundo de Socorro dos Bombeiros de Portugal, o IPO, a Liga Portuguesa Contra o Cancro e uma instituição nova, a Kastelo, pela qual temos muito carinho, que é uma casa de cuidados continuados paliativos pediátricos a quem entregamos o prémio que recebemos da Gulbenkian no valor de 50 mil euros. A Kastelo é uma das instituições que umbilicalmente queremos apoiar e depois temos apoiado pontualmente tudo o que seja mais transversal possível. Há muitas instituições que precisam, não tenho dúvidas disso, mas nós demos preferência a um filão. E há aqui uma coisa importante nunca demos a quem nos pediu. O retorno que temos tido nas instituições é muito interessante. Devo confessar que tinha algum receio da reação da sociedade, tinha receio que olhassem para a Irmandade dos Clérigos com algum ar menos positivo. Desde a primeira hora que decidimos que se corresse bem tinha que ser partilhado com a cidade. E vamos ouvindo muito que os Clérigos são o monumento referência da cidade, mas também são o monumento da partilha, da solidariedade, daquilo que é o coração do Porto, "das tripas coração". E isso alegra-me muito e é muito mais do que cumprir a responsabilidade civil, é uma obrigação que o Papa Francisco e o nosso Bispo e que a Igreja desde sempre tem provocado a que assim aconteça. 

Qual é o maior problema que o Porto tem pela frente? 

Há uma coisa que aconteceu também nesta década e que mudou muito a vivência da cidade e que foi o Metro. Porque quando nos lembramos da cidade antes do Metro e do centro da cidade depois do Metro, não é comparável. Há uma mudança total de qualidade de vida e que foi possível graças a homens muito especiais, autarcas muito especiais como o saudoso Professor Vieira de Carvalho, Fernando Gomes e o Major Valentim Loureiro que é um homem que tem o coração na boca. Eu trabalhei na Câmara da Maia e fui autarca em Matosinhos e lembro-me perfeitamente do trabalho, do namoro e do trabalho de bastidores para que os autarcas conseguissem dizer de maneira uni cada "nós queremos assim", porque quando cada um puxa para o seu lado e agora estou a ver isso novamente nos transportes com a volta dos STCP. Porque não faz sentido nenhum. Eu chamo ao nosso presidente de Câmara, o Burgomestre. O Porto não é uma cidade como as outras, até na sua história é especial. O facto de ter sido uma cidade episcopal até 1406 mostra que nós somos o Burgo e o nosso presidente de Câmara é o Burgomestre. Não é um presidente de Câmara como outro qualquer. Digo isto carinhosamente, mas o Porto é uma cidade especial. 

Isso é sua fé a falar... 

E acho que todos nós temos o direito e eles o dever de criar sempre condições para que o bem comum aconteça. Porque nós vimos o que aconteceu no Porto. Eu acho que a cidade é um "case study" no que diz respeito a eleições autárquicas. Primeiro o que aconteceu com o Fernando Gomes, depois as eleições do Dr. Rui Rio, naquele per l exigente e austero e acho que os portuenses são um excelente caso de estudo para as estatísticas, para as sondagens e para a segmentação do cidadão. É uma cidade que não deixa que brinquem com ela e eu acho que esses acontecimentos são uma prova disso. No caso das últimas eleições, as do Dr. Rui Moreira, é o ADN do Porto que se disponibiliza para o "front office". É o ADN que faz parte da nossa identidade e já não é a revolução de espada e de pistola mas é aquilo que eu digo, o Porto não deixa que brinquem com ele. E nos momentos chave para o rumo da sua história e para decisões importantes a cidade mobiliza-se. Acho que isso é único.

Qual é que é o maior desafio da cidade? 

Atendendo aquilo que era uma cicatriz complicada que tinha a ver com a reabilitação urbana, acho que esse está em velocidade cruzeiro, vejo é a capacidade de conjugarmos os interesses dos vários parceiros: os proprietários, os promotores imobiliários de maneira a criarmos as melhores condições possíveis para que os casais novos possam viver no centro da cidade porque se nota que há um gosto, um desejo, uma predisposição para isso. Tirando a questão do repovoamento da cidade, nós temos agora aquilo que podia ser uma certa fatia da sociedade portuense, a vida cultural, há um novo paradigma, não é melhor nem pior, é diferente, e aqui temos que invocar o "louco" Paulo Cunha e Silva, divertidíssimo, com saudade certamente. Há pouco vi um vídeo da cidade para promover a residência de artistas e de fato é um Porto moderníssimo, até fico de boca aberta, babado de orgulho com aquilo que ouvimos essas pessoas dizerem do Porto.

Portanto para si o maior problema da cidade é o repovoamento da baixa? 

O Espírito Santo não me soprou a tal solução, mas a desertificação da baixa começa com o grande movimento de esvaziar os centros das cidades para os bairros sociais, e para as periferias, a partir daí começaram os problemas que se cruzam com outros: condições socio-económicas, das pessoas, das famílias, da marginalidade. No fundo são problemas de pessoas e por isso é que gosto de ver o Burgomestre com este cuidado de olhar sempre para os problemas na ótica das pessoas, porque às vezes há a tentação de tratarmos os assuntos por classificações institucionais, por nomenclaturas, esquecendo que esta- mos sempre a falar de pessoas. O que vemos é que quando atacamos os problemas, enfarinhando-nos neles, as coisas fazem-se. Porque às vezes o que pode acontecer é que as decisões centrais não encaixam na realidade. É como a história da escola Alexandre Herculano, na Av. 5 de outubro em Lisboa, onde fica o ministério da Educação, se calhar nem sabem onde é a escola, nunca cá estiveram, nem o que ela representa e quem diz nessa área de governo diz em muitas outras. Há problemas da cidade que não são diretamente responsabilidade da autarquia nem do Burgomestre. É saudável para todos os intervenientes da vida nacional que haja uma "regionalização" o que não quer dizer propriamente "órgãos regionais". 

O Burgomestre como lhe chama é bandeira contra o centralismo. Revê-se nessas criticas contra o centralismo? 

Sim, absolutamente. Estou em Lisboa há dois anos, vou à segunda, regresso à sexta, tenho feito um esforço de permanentemente marcar presença no Porto, o que é saudável, para o oxigénio e para a cidadania e por todas as razões e mais alguma. Mas tenho sempre medo de como encaixam em Lisboa as reivindicações de cá, porque há sempre o facilitismo de encaixar isso em provincianismo paroquial, e isso é negativo. Agora não é culpa de quem faz as exigências, é culpa eventualmente da Corte. Não sou historiador, mas eventualmente a Corte sempre fez isso. Agora o que é necessário é avançar sempre com fatos e isso o Dr. Rui Moreira faz muito bem, já o fazia quando presidia à Associação Comercial do Porto (ACP) e vimos isso na questão da louca construção do aeroporto da Ota, quando a ACP ofereceu ao Estado um estudo a defender a Portela mais um. Acho sempre muito importante que sejamos capazes de avançar com aquilo que são os factos. Nunca tive da parte de um concidadão lisboeta qualquer sentimento de superioridade em relação ao Porto, ou de desrespeito, pelo contrário. Mas é fundamental termos um presidente de Câmara deste tamanho, visível, audível e respeitado.

Usa a ponte aérea? 

Eu sou um pecador perante o Burgo- mestre porque uso a ponte aérea. A ponte aérea é uma coisa magnifica mas concordo 200% com o Burgomestre quando diz que a ponte aérea não devia ser moeda de troca com os voos diretos que tínhamos para alguns destinos estratégicos. Agora que a ponte aérea é magnifica é, quando as coisas correm bem saio da Renascença e estou no aeroporto Sá Carneiro, em 60 minutos. Tenho reparado que muitas das pessoas que encontrava no Alfa estão agora no avião. A ponte aérea é um serviço magnifico que a TAP nos presta, mas não havia necessidade que a ponte aérea fosse uma moeda de troca nas ligações diretas com cidades que são importantes para tudo o que é vida económica e empresarial da cidade. Isso é um disparate. É pena que o Burgomestre não tivesse sido acompanhado pelas outras entidades da região, às vezes isso acontece, as pessoas andam distraídas, dantes havia o sino e as pessoas ocorriam de imediato. É fundamental que não deixemos de ter ?sangue na guelra' para não nos deixarmos comer. 

Como é que aparece a presidente do grupo Renascença? 

Não era a minha praia. Estava muito sossegadinho na minha vida como sempre acontece, com muitas ocupações aqui na cidade: vigário geral da diocese, capelão da Misericórdia do Porto, presidente da Irmandade dos Clérigos e Vice-Reitor do Santuário de Santa Rita de Ermesinde onde celebrava sempre com muito carinho aos domingos ao fim da tarde, quando fui chamado a ir para a Renascença. Ao Cónego João Aguiar, presidente da Renascença, foi-lhe diagnosticado um problema de saúde, um problema oncológico e a situação estava a evoluir com algum sofrimento da parte dele. No verão de 2015, fui convocado para esta situação.O senhor Dom Armindo Lopes Coelho, saudoso bispo do Porto, dizia muitas vezes que a única coisa que pediu à Igreja foi para ser ordenado padre e depois nunca pediu mais nada. Eu gostava também de chegar a ancião e poder dizer a mesma coisa. A área da comunicação é a minha área, gosto, mas a área da gestão e da administração de um grupo de comunicação social nacional não tinha passado pela minha cabeça. 

Como é que está a correr? 

Fiz um estágio durante um ano, fiquei como vice-presidente, o Cónego João Aguiar fez a amabilidade de prolongar um ano mais a presidência onde aprendi o nome das coisas, entretanto senti necessidade de fazer um curso de gestão e administração para executivos na católica para pelo menos pegar nos papéis direitos e para saber o nome das coisas. Tinha um professor que me dizia "Padre Américo não se preocupe, o senhor, em todas essas reuniões em que se sente fora do jogo, o que tem é que fazer a pergunta certa, a partir daí está dominada a plateia". Fui fazer esse curso de executivos e gostei muito porque muitas vezes o que nós (eu, a Igreja, instituições) fazemos é falhamos por não salvaguardamos o profissionalismo das coisas. Às vezes julgamos que sabemos de tudo, de arquitetura, de engenharia, de gestão, de jornalismo e é um disparate. Temos que ter sempre a sensibilidade de nos rodearmos daqueles que são especialistas nas diversas áreas. E a César o que é de César. Tive necessidade de fazer isso, e confesso que agora me sinto mais confortável. Aliás, na Irmandade dos Clérigos, aquilo que desde a primeira hora decidi é que mesmo os colaboradores são esmagadoramente da escola de hotelaria e turismo. Quem vem para aqui tem que ter formação específica para isto, se não matamos os projetos. 

Como é que olha para o mundo dos media? 

O mundo dos media está muito conturbado, a Renascença faz parte da plataforma dos media privados e temos uma reunião mensal, na primeira reunião confesso que me senti... tinha o Dr. Francisco Pinto Balsemão (depois é que veio o lho, que é meu colega caloiro), o Dr. Proença de Carvalho, depois a Rosa Cullell, Paes do Amaral depois o grupo Cofina, e depois eu um jovem da Invicta. Confesso que o que me salvou foi a simpatia dos anciãos e de todos a ajudarem-me a entender que era um igual entre iguais. Olho para o mundo dos media com muita preocupação, os números de venda de papel de jornal são terríveis, são sempre de descida. 

Acha que vai acabar o papel? 

Eu acho que nunca acaba. Fiz uma tese de mestrado em ciências da comunicação e uma das coisas que descobri é que normal- mente os novos media não matam os media clássicos. Mata quando os anteriores não se adaptam e aqui o segredo é sempre a capacidade de adaptação e nós vemos mesmo títulos internacionais de jornais que se estão a adaptar na plataforma digital, agora o mundo dos media está muito sensível porque volume de publicidade caiu abruptamente. 

E isso não é um problema para a própria democracia. 

Acho que sim, a questão económica cruzada com as redes sociais e a sensação que se pode dispensar os jornalistas isto é fogo na palha. Depois vemos títulos que dão prejuízo a serem comprados por preços exorbitantes, ou alguns títulos que ganham força em períodos eleitorais. Acho que é fundamental que o Estado garanta, mas não sei como se faz, tudo isto é muito sensível, vimos agora o que aconteceu na eleição americana. A tudo isto somar a concorrência desleal dos gigantes Facebook e Google.... 

E a Renascença como está? 

A Renascença está muito bem, tem a particularidade de ter um dono com rosto (os nossos acionistas são o Patriarcado de Lisboa com 60% e a Conferencia Episcopal com 40%). O grupo tomou decisões, dolo- rosas, vendeu a sede do Chiado, fez uma reestruturação anteriormente, agora temos 250 funcionários e digo-lhes sempre que as minhas decisões têm 250 preocupações, as suas famílias e os seus compromissos e a Renascença que vai fazer brevemente 80 anos nunca deixou de pagar no dia certo os seus compromissos com os seus funcionários. E isto tem um valor único. Aquilo que significa a quota de mercado nós temos quatro rádios (Renascença, Mega Hits, a RFM, e Radio Sim). A RFM está novamente líder da rádio em Portugal, está sempre ombro a ombro com a concorrente, depois nas rádios generalistas somos os primeiros. O mercado é pequenino e no digital há dois papões que comem 70% das receitas, que são o Google e Facebook. E aqui há uma grande falta de músculo da União Europeia em não disciplinar aquilo que é o exercício da atividade, porque estas duas empresas são carrapatos, vivem à custa dos conteúdos que os outros fazem. E não pagam um cêntimo. Nós estamos a avaliar e a estudar aquilo que possam ser os desafios do digital para o mundo da rádio porque nós não podemos ser apanha- dos de surpresa nas mudanças tecnológicas que aí vêm. Quando ouço os partidos nórdicos a dizer que vão desligar o FM e quando oiço as empresas de automóveis a dizer que no meu carro não vai haver um transístor, mas vai ter um terminal de dados temos que correr da pata. 

Acha que o Porto perdeu influência a nível nacional? 

Confesso que tenho saudades daquela conversa dos vice-reis, mas também era um tempo de reinados. Lembro-me do Eurico de Melo, o Vieira de Carvalho, que são culpados de muita coisa muito boa e de coisas menos boas. Hoje em dia noto alguma... mas acho que é o problema da democracia direta. A transformação do digital elevou a uma democracia direta mas também acontece muito naquilo que é até a realidade da igreja. Entre cada um de nós e o topo eliminaram-se os corpos intermédios. As dioceses, as vigararias, as paróquias, as estruturas, agora o Papa é o Papa do Mundo, é o pároco global e agora também acontece isso nos vários níveis de administração. No passado recente os autarcas eram figuras com mais influência, com mais jurisdição no território, e via-se nos media, havia uma dúzia de autarcas que estavam nos media, agora não.

Há falta de líderes. 

E isso é negativo. Há falta de ligações fortes e de respeito. Também não sei se no mundo autárquico foi devidamente preparada a sucessão dos dinossauros. E em muitos sítios a sucessão foi atabalhoada e estou curioso para ver se algum deles vai ter a tentação de voltar. Mas penso que numa sociedade como a nossa é muito importante a existência de corpos intermédios, com influência, com peso. 

Como olha para o país político? 

Somos de uma geração que estava habituada ao arco da governação e fomos assaltados por uma coisa divertidíssima chamada "geringonça". Eu como Padre até ao último segundo acredito que todas as pessoas no exercício da função fazem o melhor que podem para o bem comum. Tenho apanhado algumas desilusões, mas acho que temos que acreditar nas pessoas porque se partimos de pé atrás sempre não é saudável. E parto do princípio que as pessoas são sérias e têm um objetivo, pode não ser aquele que defendo, mas a democracia não vale... mas é certo que no nosso país havia esse acordo tácito, essa tradição. Tivemos uma situação diferenciada que toda a gente lhe dava uma esperança de vida muito reduzida mas o que é certo é que o nascituro tem feito pela vida e tem se desenrascado. Eu não sou da área da economia mas há quem diga que os números são bons, outros dizem que são bons mas não são estruturais. E depois ainda há o FMI e o BCE... eu penso que há um problema maior e que se chama Casa Comum Europeia. Mas quando olho para o Parlamento, com aquele grau de crispação, eu não sei se o cidadão acha piada. Os "fait divers" reduzem o parlamento... 

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"Eu acho que tenho uma costela monárquica, não sei porquê, sou povo mais povo do povo e portanto a única aspiração que eu podia ter era ser capelão da Corte"

Balanço? 

Faço um balanço positivo, atendendo às expectativas reduzidas em relação à circunstâncias. Mas é engraçado ver o jogo de cintura que o Bloco de Esquerda e que o PCP têm que fazer. Quando iniciei funções na Renascença fui cumprimentar todos os órgãos de soberania e todos os líderes partidários e das forças armadas e gostei muito de falar com eles e mais reforcei em mim que apesar de poderem pensar diferente daquilo que eu penso e que defendo, acreditam naquilo que defendem e isso acho que é fundamental. Não concordo com algumas coisas que esses protagonistas dizem e defendem, mas acredito que querem fazer o melhor que sabem e em que acreditam. 

E o balanço de Marcelo? 

Não sei se é tempo disso. Eu acho que tenho uma costela monárquica, não sei porquê, sou povo mais povo do povo e portanto a única aspiração que eu podia ter era ser capelão da Corte, mas gosto muito quando o Chefe de Estado começa a significar a representação pura e dura do Estado da Nação. E acho que é isso que ele tem conseguido, é nós olharmos para o Prof. Marcelo como alguma coisa que é nossa que nos identifica e que nos representa. E isso não se explica. Ele tem uma agenda louca e não sabemos de toda. No passado recente havia a preocupação da preparação, vinha a visita aos locais agora tudo isso se atropela, agora o resultado é mil ao cubo positivo naquilo que foi recuperar uma relação de confiança e de afetividade da população com o seu chefe de Estado. Não digo que é melhor... é diferente. Arrisca-se a ter de deixar o coração no Porto tal a relação de afeto que está a estabelecer, como ele disse, com os "Invictus"... 

O Papa Francisco também fez essa aproximação... 

Os italianos falam do ?fare' Papa, e que é cada um depois vai descobrir como é que vai ser Papa, porque não há uma cartilha ou um regulamento. Quando o que se faz é verdadeiramente o que se é, a população nota. Não é para criar uma imagem. O balanço é esmagadoramente positivo, a minha dúvida que tenho é até onde é que vai esta ?gravita' naquilo que significa ter ou não ter persuasão sobre os agentes. Este homem nasceu, viveu e foi adulto, foi padre, foi Bispo, foi Arcebispo e foi Cardeal na Argentina e por isso toda a sua experiência de vida e de relação com as coisas e com os acontecimentos é da América Latina e que não tem nada a ver com aquilo cinzento e delimitado que são os nossos sentimentos e as nossas instituições e portanto acho que isso deve ter sido particularmente divertido na Santa Sé, nos primeiros meses. Desde as coisas simples do dia a dia, que começou logo com a eleição de ir pagar a conta de onde esteve alojado e de vez em quando vai comprar uns óculos, uns sapatos.

Como é que percebeu que queira ser padre? 

Tenho 43 anos, sou da colheita de 1973, sou o mais novo de seis irmãos.?Não é uma família muito católica e é até pouco praticante. Quis ir para a catequese e fui e não quis ir para a catequese e não fui. A certa altura em 1987, anunciam que vai ser aberto um agrupamento de escuteiros e até hoje sou um fã louco do tio patinhas, do pato Donald e dos sobrinhos, sou um escuteiro mirin teórico, quando vi o anúncio fui logo lá, tinha 14 anos... A dada altura perguntam-me se andava na catequese, ao que respondi que não. Se não anda na catequese não pode porque este agrupamento é do escutismo católico português e por isso é obrigatório andar na catequese. Fui para casa e tive que tomar uma decisão na minha vida: fui para a catequese e também z a primeira comunhão. 

E foi aí que percebeu a sua vocação? 

Não, longe disso. Tínhamos um colega, o Augusto, que andava no seminário e - fizemos-lhe a vida negra. Chamava-lo de padreco. Fizemos tudo o que tínhamos que fazer para ele desistir e ele desistiu. A certa altura o chefe de agrupamento da minha terra, José Teixeira, disse-me que a Diocese do Porto tinha uma coisa chamada pré-seminário, era uma coisa uma vez por mês, e que eu devia lá ir. Levei aquilo a mal... "está a chamar-me padre?". Ele lá me explicou que não era ofensivo e que eu tinha jeito, aquilo mexeu comigo, até porque Leça do Balio, é a terra de Dom Manuel Martins, Bispo emérito de Setúbal e sempre tive por ele grande admiração. E havia ainda o Padre Pedro, o meu pároco. E lá disse à minha mãe que queria... 

O seu pai não apoiava? 

Disse à minha mãe que escondeu do meu pai. O meu pai queria que eu tivesse uma pro ssão, aliás ele nem queria que eu fosse para os escuteiros. 

É nessa altura que cria a Associação para despoluir o Rio Leça? 

Exato. Juntamente com uns colegas fundamos a AMILEÇA, uma associação de defesa do ambiente, os amigos do Rio Leça. O objetivo era despoluir o rio, fizemo-lo com Vieira de Carvalho, Narciso Miranda e com o Joaquim Couto de Santo Tirso. Paralelamente o Vieira de Carvalho convida-me para trabalhar na Câmara da Maia. Tinha 19 anos, era o primeiro eco- conselheiro do país. Entretanto encaixam umas autárquicas e o Narciso Miranda convida-me para integrar a lista. Fico muito aflito, digo ao Vieira de Carvalho e ele responde: "tu não te preocupes que eu falo com o Zé, tu não levas nada daqui para Matosinhos, não trazes nada de lá para cá e ficas nos dois sítios". E assim foi. Aquilo durou uns meses. 

E na Igreja nota-se o efeito do Papa Francisco exatamente nisto que estava a falar de maior proximidade com a população? 

Nunca nada será como dantes. Daqui a uns tempos virá outro Papa, quando acontecerem, ou de morte ou de resignação, mas nunca mais nada será como dantes, como sempre acontece com todos. Quem olha para a história dos Papas vê que cada um traz novidades, umas boas outras más, mas normalmente nunca há a tradição... o Dom Manuel Clemente quando foi da eleição disse uma coisa que achei engraçada e que é que nunca podemos esquecer que este Cardeal Bergoglio é um coração, é uma vida da América latina. A relação dele com as pessoas e com as coisas não tem nada a ver com a vivência desta velha Europa e por isso é que às vezes algumas coisas nos poderiam parecer um bocado exageradas, sem equilíbrio. que nunca na vida aconteceu, mas são coisas simples que o cidadão comum valoriza e diz "este é um dos nossos". Isto não quer dizer que o Papa Bento xvi, ou o João Paulo ii não tenham sido um dos nossos. Agora o estilo do Papa Francisco é qualquer coisa que nos desarma. 

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"Que a Igreja nunca tenha a tentação em nenhuma circunstância de excluir ninguém"

Mas aproxima o cidadão da Igreja? 

Sim aproxima porque chama-nos a atenção para uma coisa que não devia ser novidade. Que a Igreja nunca tenha a tentação em nenhuma circunstância de excluir ninguém. Ser uma Igreja aberta, uma Igreja de acolhimento, uma Igreja inserida e isto tem feito na Igreja, tem provocado um movimento muito interessante daqui- lo que era uma franja muito significativa de pessoas crentes e não crentes, mais crentes ou menos crentes que se sentiam menos acolhidas ou mesmo não acolhidas. 

Como é que volta para o seminário? 

Estava eu na Câmara, como deputado de Matosinhos e conselheiro na Câmara da Maia, e quando tudo parecia conjugar- -se, comecei a não me sentir realizado e a certa altura vou ao pré-seminário. Fui lá ter uma conversa e até parecia que estavam à minha espera. Estávamos em 1995, fui lá dizer que não me sentia bem, não me sentia realizado e que devia ter ficado "infetado" (risos). Tinha aquela certeza de que todos os outros fazem o melhor para o bem comum e tinha a certeza que aquele também era o meu papel... Sabe na escola primária eu queria ser palhaço, acho que bate certo... aquela ânsia de querer fazer os outros felizes e contentes. O Dr. Sousa Marques, do seminário Bom Pastor, em Ermesinde, disse-me que iam pensar, ele e o Padre Jorge Madureira, responsável do Pré-seminário, mas que havia uma condição: "tens que deixar tudo". Pela experiência que tinham concluíam que a minha saída anteriormente tinha a ver com as várias frentes em que estava envolvido e portanto não me permitia ter o foco. 

Lá foi de novo pensar na vida... 

Lá fui de novo para casa para tomar uma decisão e deixei tudo e entrei no seminário em 1995. Os primeiros meses foram complicados, principalmente no que diz respeito às perdas das diversas autonomias: deixar de ter ordenado, deixar de ser dono do meu nariz. Mesmo fisicamente foi traumatizante, eu chegava a tomar 14 cafés por dia, e chego ao seminário e não havia 14 cafés para tomar. Estávamos em setembro e até o bar estava fechado, foi um "desmame" complicado. E depois aquele habituar... eu tinha 22 anos, os meus colegas da Câmara ligavam e convidavam-me para ir jantar. Eu dizia que sim e depois ia falar com o padre e ele dizia "não podes"... Mas não posso por quê? E chegar ao fim do mês e não ter autonomia... mas depois aprendes... uma vez fui ter com o Reitor, o Dom António Taipa, agora bispo auxiliar, e ele respondeu-me "podes fazer tudo o que quiseres, mas nem tudo te convém, agora decide". Decidi que não ia e percebi que o convívio com os meus colegas iria ser negativo, não por eles, mas por eu não me posicionar. 

E quando é ordenado? 

Sou ordenado a 8 de julho de 2001. Tinha feito o meu estágio de Diácono na Paróquia de Paranhos com o Padre Magalhães... muitas saudades e de um modo especial da "Julinha" a senhora que nos tratava com todo o carinho... Tive pároco em S. Pedro de Azevedo entre 2001/2002, em pleno bairro do Lagarteiro, em Campanhã. De resto, é com muito agrado que vejo e aplaudo os investimentos da Câmara do Porto nessa zona oriental da cidade, o famoso Vale de Campanhã. Gostei muito de estar em Azevedo, foi divertidíssimo, é um Porto rural, um Porto romântico. Lembro-me das primeiras vezes que chegava à residência, que fica mesmo na entrada do bairro, de ter tido algum receio. Tudo mitos. Um dia cheguei à noite e tinha uns miúdos sentado no muro, pensei, é desta que vou ter problemas, abro a porta para sair do carro para ir abrir o portão e um deles salta do muro e diz : "Senhor Prior, boa noite, não se incomode que eu abro-lhe o portão, e a partir de agora, não se preocupe que nós abrimos-lhe sempre o portão, seja para sair ou para entrar". E naquele quase um ano que lá estive foram sempre eles que me abriram o portão. E em todas as visitas que fiz ao bairro encontro pessoas, encontro histórias, vidas desgraçadas e um ciclo vicioso difícil de ultrapassar. Homens, alguns universitários que quando se candidatavam a um emprego tinham dificuldade de colocar a morada porque quando diziam onde moravam as coisas tornavam-se mais difíceis. Aquelas pessoas não eram nem melhores nem piores, são todas feitas do mesmo barro, mas as oportunidades são diferentes. Depois o Dom Armindo pediu-me que fosse para o Paço Episcopal e fui vigário geral da diocese, e entretanto o Dom Armindo completa 75 anos de idade e tem um problema grave de saúde, ficou provisoriamente o senhor Dom João Miranda a governar a diocese, e vem o Dom Manuel Clemente entre 2007 e 2013 trabalhamos muito em conjunto, foi diferente, lembro-me da admiração das pessoas por ele andar na rua, de ir à Fnac, de ir ao barbeiro, lembro-me das pessoas me dizerem "vi o sr. Bispo na rua", "vi-o no metro" mas fizemos um trabalho simpático, foi um trabalho diferente na relação com a Academia, na relação com o território, e depois chegamos em 2013 e fomos "assaltados" pela circunstancia do Dom Manuel Clemente ser nomeado Cardeal Patriarca de Lisboa e vem o Dom António Francisco, felizmente reinante... no interregno o Dom Pio foi Administrador Apostólico. Fui também Pároco da Sé entre 2014/2015 com os desafios inerentes como a intervenção na Igreja de Santa Clara, o novo centro de Saúde. E no entretanto fui para Lisboa mas sobrou este cordão umbilical.

Vai a Fátima em maio aquando da visita do Papa Francisco? 

Não gosto muito de estar em Fátima com multidões, gosto mais da Fátima na versão soft. Fui em 2000 durante a visita do Papa João Paulo ii, eu era seminarista e trabalhei na casa do Papa. Fomos destacados para trabalhar na casa do Papa mas quem trabalhasse lá não podia andar fora e dentro e portanto a vivência foi estar dentro da casa, mas tivemos a oportunidade do "back office" que foi divertidíssimo, com aquela entourage. Quando o Papa Bento XVI veio ao Porto não morri de aflição por pouco, aliás devemos fazer um louvor à capacidade do Norte, tudo o que foi feito foi "pro bono", os móveis de Paços de Ferreira e Paredes, as floristas, a tapeçaria, as autoridades, a certa altura chorávamos do stress. Confesso que quando o Papa chegou aos Aliados, deu-me um ataque de choro. Não sabíamos qual ia ser a envolvência e chegou a colocar- se a hipótese de reservar espaços e quando nos começamos a perceber da multidão que Deus providenciou, foi um momento único e é daí que me vem a minha convivência com todos os agentes da cidade. A Câmara, a presidência, a vereação, todos os serviços e departamentos foram excepcionais. Os Clérigos foi outra experiência de como eu vi que as entidades públicas não são más por serem públicas, nós quando nos juntamos para fazer o que quer que seja somos magníficos e o Porto, seja na história, seja na inovação, seja na cultura, é verdade que quando nos juntamos as forças ultrapassamo-nos a nós próprios. A visita do Papa em 2010, os Clérigos e aquele vídeo da Câmara mostram que é um Porto moderno, é um Porto jovem, é um Porto cosmopolita e tudo isto somado é que fez com que ganhássemos àquelas cidades europeias.