Cultura

Reportagem: A ânsia de subir ao palco do Coliseu com as verdades e mentiras da ópera de Mozart

  • Porto.

  • Notícia

    Notícia

Podíamos dizer que está a ser preparada a várias mãos a abertura da temporada na mais emblemática sala de espetáculos da cidade. Mas aqui o papel principal é o das duas dezenas de vozes que trazem a ópera de volta ao palco do Coliseu do Porto. “Così Fan Tutte”, de Wolfgang Amadeus Mozart, estreia a 4 de setembro e repete no dia seguinte numa versão especial para os Concertos Promenade 2.0.

“Vamos fazer o primeiro ato. Vou precisar de três de vocês para a cena um, para serem empregados. Já vos explico”. Quem dá as instruções, em mais um dia de ensaios, é António Durães, o encenador, e os atores foram selecionados para integrar o coro desta ópera cómica do compositor austríaco. O convite foi feito em junho e, depois de um casting onde apareceram cerca de 70 pessoas, o maestro Cesário Costa escolheu 16.

“Poderíamos ter convidado um coro para participar”, explica o diretor musical de “Così Fan Tutte”, “mas entendemos que seria uma possibilidade abrir esta produção a pessoas que nunca fizeram ópera, ou que já fizeram há muito tempo, a estudantes de canto, ou a pessoas que possam nem saber música”.

“É dar-lhes a possibilidade de, em vez de estarem do outro lado, a assistir ao espetáculo, estarem em palco, a cantar música de Mozart, a contracenar com os solistas, terem essa experiência”, conta Cesário Costa, que partilha da opinião de que “a música, a ópera, tem, cada vez mais, de encontrar formatos, naturalmente garantindo a qualidade e o respeito pelo texto musical, para levar a música às pessoas. E que as pessoas se sintam mais dentro daquilo que é feito, para não haver um distanciamento”.

Beatriz Maia, Inês Constantino, João Terleira, Job Tomé, Marina Pacheco e Tiago Matos são “os jovens solistas, alguns deles com carreiras fora de Portugal e que, no período de férias, vão participar nesta produção”. Cesário Costa acredita que “é muito importante esta possibilidade que estamos a dar a jovens com qualidade de estarem em palco, de mostrarem toda a sua qualidade”.

Regressar ao que no palco e na plateia se anseia

Depois de alguns anos sem produção operática própria, os 80 anos do Coliseu do Porto querem assinalar o regresso com toda a pompa que a tradição pede. Além da abertura à comunidade para participar, o espetáculo conta com a música da Orquestra Clássica do Instituto Politécnico do Porto, além de uma parceria com o Teatro Nacional São João. São cinco semanas de trabalho, entre ensaios e todas as tarefas de produção, facilitadas por uma autêntica “união de esforços”, nas palavras do maestro.

Cesário Costa não tem dúvida de que “é muito importante o Coliseu voltar a produzir ópera” e a razão, entre muitas, é simples: “as pessoas no Porto gostam e os espetáculos que se fazem na cidade têm sempre muito público, como prova a “Cavalleria Rusticana””, apresentada recentemente.

Depois de ter passado pelas óperas do Coliseu “há muitos, muitos anos”, António Durães assume o peso de “voltar a produzir para este sítio, que é emblemático na cidade do Porto”. Nas palavras do encenador, “o Coliseu tem responsabilidades na vida cultural da cidade do Porto. É uma casa que tem muitos anos de prática artística regular, nos vários domínios”.

“É muito importante sentir que ele tem a intenção de estar presente na vida das pessoas por via da cultura e das artes performativas ditas mais eruditas. Isso é muito estimulante, porque cumpre uma espécie de vazio no Porto, que é uma cidade demasiado grande. E não é só uma cidade, é toda esta região. É muito importante que o Coliseu dê estes sinais”, afirma António Durães.

Confessando sentir que “estamos a viver tempos de uma tremenda escuridão, sem saber muito bem como sair deste labirinto de sombras de nuvens”, o encenador acredita que “estes pequenos acontecimentos podem significar uma espécie de luz que aparece nas nossas vidas e nas vidas das pessoas, uma espécie de arremedo da realidade, ou mesmo um regresso paulatino à normalidade”.

Assim são elas, a verdade e a mentira

“Così Fan Tutte” é a terceira ópera de Mozart com o libreto do veneziano Lorenzo da Ponte, com quem ofereceu ao mundo as incontornáveis “As bodas de Fígaro” e “Don Giovanni”.

Assumindo o papel de “vilão” da trama, o barítono Job Tomé conta que “Così fan Tutte”, “é uma ópera cómica, especialmente divertida para o D. Alfonso, que cria toda uma confusão para sair um pouco da rotina do dia a dia”. “Acaba por brincar com estes jovens que estão ali à sua mercê, que têm ideias muito concretas da vida e que percebem que, afinal, não é bem assim”, adianta o solista, confessando-se “contente com este regresso, principalmente depois deste tempo fechados, em que sentimos falta deste burburinho dos palcos. É um regresso muito positivo”.

Quando a cortina se fechar, António Durães espera que o público leve consigo mais do que uma história. “Para nós, é mais importante pensarmos como algumas das nossas verdades são uma tremenda mentira porque são construídas em cima de cacos de verdades. As pessoas, mais ou menos perversamente, têm a capacidade de pôr em cacos essas verdades e de, de repente, fazer com que esta grande mentira seja constituída por pequenas mentiras em que todos participamos, e temos consciência disso”. “Così fan tutte”. Ou seja, “assim são elas”.