Cultura

Quintas de Leitura regressaram com público numa celebração à mulher poeta e à palavra musicada

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Foi uma noite memorável para os amantes do ciclo Quintas de Leitura, que já soma 18 anos de intervenção poética na cidade. Depois de a última sessão presencial ter decorrido em fevereiro no Teatro Municipal do Porto - Campo Alegre, o programador João Gesta surpreendeu uma vez mais o público naquele que era um regresso muito aguardado, desta vez no âmbito da Feira do Livro do Porto, numa sessão especial que decorreu no auditório do Super Bock Arena - Pavilhão Rosa Mota.

A exceção, no intróito. O humor acutilante, subversivo e, por vezes, desconcertante de Hugo van der Ding levou a palco um homem que, desabridamente, apresentou as 31 poetas homenageadas na sessão "Senhor, enche o meu quarto de alto mar", título que emergiu de um verso de Filipa Leal.

Entre contas e comparações, algumas delas non-sense, o autor de A Criada Malcriada formulou uma série de exercícios, que inconscientemente tantas vezes fazemos, para colocar em diferentes gavetas de categorização estas trinta (mais uma) mulheres que, contemporâneas ou não - a mais velha, disse Hugo van der Ding, nasceu em meados do século XVIII "e por isso está morta", e a mais nova, nascida em 1990, "ainda não está morta, mas um dia, inevitavelmente, também estará" -, apresentam nas linhas dos seus versos a linguagem universal do amor, da paixão, da vida - e também da morte - o ócio, a luxúria e outros tantos pecados capitais.

São elas Florbela Espanca, Leonor de Almeida, Natércia Freire, Sophia de Mello Breyner Andresen, Natália Correia, Ana Hatherly, Maria Teresa Horta, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Inês Lourenço, Rosa Alice Branco, Ana Luísa Amaral, Regina Guimarães, Rosa Oliveira, Maria do Rosário Pedreira, Adília Lopes, Ana Marques Gastão, Ana Paula Inácio, Bénédicte Houart, Rosalina Marshall, Inês Dias, Golgona Anghel, Filipa Leal, Inês Fonseca Santos, Raquel Nobre Guerra, Cláudia R. Sampaio, Catarina Nunes de Almeida, Matilde Campilho, Andreia C. Faria, Francisca Camelo e Maria de Sousa, em poemas ditos por Filipa Leal, Cristiana Sabino, Francisca Camelo e Paula Cortes.

Na sessão que fez caminho de afirmação no feminino, a partir da mais verdadeira e profunda via de conhecimento - a Poesia, os lugares estiveram, pela primeira vez, ocupados com uma cadeira de intervalo. Na sala não se viam os sorrisos, mas a expressão dos olhares que as máscaras não ocultam.

Numa plateia também preenchida pelo presidente da Assembleia Municipal do Porto, Miguel Pereira Leite, por vereadores, pelo diretor do Museu da Cidade e programador desta edição da Feira do Livro, Nuno Faria, e pelo conselho de administração da empresa municipal Ágora - Cultura e Desporto do Porto, foi ainda de palavra musicada que se abrilhantou a sessão, com as doces e envolventes vozes de Inês Homem de Melo e de A Garota Não (Cátia Mazari Oliveira). A rabeca de Ianina Khmelik e a reinterpretação de "Creep", dos Radiohead, pela drag performer & singer Natasha Semmynova constituíram mais dois pontos altos da sessão.

Ao cair do pano, o último poema de Maria de Sousa, que será evocada no próximo domingo, às 16 horas, na Feira do Livro.

Carta de amor numa pandemia vírica

Gaitas-de-fole tocadas na Escócia

Tenores cantam das varandas em Itália

Os mortos não os ouvirão

E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio

Quem pretendem animar?

As crianças?

Mas as crianças também estão a morrer

Na minha circunstância

Posso morrer

Perguntando-me se vos irei ver de novo

Mas antes de morrer

Quero que saibam

O quanto gosto de vós

O quanto me preocupo convosco

O quanto recordo os momentos partilhados e

queridos

Momentos então

Eternidades agora

Poesia

Riso

O sol-pôr

no mar

A pena que a gaivota levou à nossa mesa

Pequeno-almoço

Botões de punho de oiro

A magnólia

O hospital

Meias pijamas e outras coisas acauteladas

Tudo momentos então

Eternidades agora

Porque posso morrer e vós tereis de viver

Na vossa vida a esperança da minha duração

Maria de Sousa

3 de abril de 2020