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Oh vizinho, quem te disse a ti que as cantigas tinham idade?

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É o último ensaio antes de subir ao palco, na junta de freguesia, mas a ansiedade não acompanha as vozes que, todas as semanas, se harmonizam no Bairro da Lomba. Cantam pela alegria, pelas memórias das cantigas antigas, para espantar a solidão. O Coro dos Vizinhos nasceu para provar – se necessidade houvesse – que a música é para todas as idades.

Antes da chegada do "professor" Alexandre, há um grupo que já o espera. Ninguém quer faltar ao ensaio, chega mais um vizinho em passo apertado. Este é o seu momento juntos. "Cantamos o Alecrim?". Podia ser "Rosa arredonda a saia" ou "Menina estás à janela", mas foi aquela que escolheram para apresentar no dia seguinte.

"E se desafinarmos?". Também faz parte, neste coro a liberdade para arriscar um dó, um ré, mais ou menos fora do tom, é absoluta. "Mais alto, agora sem vergonha", incentiva o professor. Foi apenas disso que precisou Lúcia Carvalho, de um incentivo. "Estava um dia à porta de casa e eles puxaram-me para aqui", relembra.

E não podia estar mais feliz. "Em vez de estar metida em casa, convivo aqui com esta gente. Dá-nos mais ânimo. Isto para as nossas idades é muito bom", reconhece. Aos 80 anos, partilha como "gosto de cantar, sou uma pessoa alegre", depois de já o ter feito "na igreja". "Para mim, a música é tudo!", confessa Lúcia.

Tal como para a vizinha Aurora Rodrigues. Também a viver sozinha, esta moradora da Lomba garante mesmo que "a música põe-me mais alegre, parece que fico mais aliviada, que o tórax fica mais aberto. Fico bem".

Com 85 anos, diz que veio para o coro pelo convívio e pelo que de bom dali foi retirando. Até da perda da ansiedade ou do receio. Quando não sabe bem as canções "vou emendando". O que importa é o que sente: "fico satisfeita, parece que fico livre, parece que sai tudo de mim. Divirto-me muito", partilha. Quem canta seus males espanta?

Música de impacto social

O grupo acredita que sim. Nascido em junho de 2021, em pandemia, esta foi uma forma de retirar a população sénior de casa em segurança. Com o bom tempo, os ensaios são no parque desportivo da Associação de Moradores da Lomba.

"O Coro dos Vizinhos procura fazer com que estas pessoas convivam umas com as outras, que saiam de casa, que tenham uma tarde diferente, que tenham a oportunidade de criar aqui outras redes de relações com os vizinhos", explica a responsável pelo projeto Redes, nascido através do Contrato Local de Desenvolvimento Social (CLDS), com coordenação da Associação do Porto de Paralisia Cerebral e posto em prática pela Fios e Desafios.

Beatriz Lobo confessa que "têm sido semanas muito ricas". De um grupo de três pessoas – que chamaram através de cantigas e convites porta a porta – já passaram pelo coro três dezenas. Através de dinâmicas musicais, jogos e outras atividades, promove-se a "coesão grupal e as relações, dentro e fora do coro".

"Temos aqui pessoas que se desenvolveram a nível social de uma forma muito impactante", partilha a responsável, sublinhando como alguns "que moravam aqui na Lomba há 50, 60 anos e não conheciam a rede de vizinhança que tinham" e, através do Coro dos Vizinhos, "estão socialmente mais inseridas naquilo que é esta zona".

Beatriz confessa como "é muito bom" ver como a música, e o recordar de cantigas de outros tempos, trazem a esta população "memórias daquilo que era a infância deles, as brincadeiras, os sentimentos que viveram quando eram crianças".

Cantar com propósito

Além das cantigas de sempre, este coro quis superar-se e fazer, ele próprio, uma canção. "No Coro…" fala de tudo o que ali encontraram: da alegria, do convívio, da companhia, da amizade. A melodia é familiar, aquele "na na na", de "Hey Jude", dos Beatles está quase com a harmonia perfeita. O professor dá o sinal para ninguém falhar, distribui instrumentos a cada um e dá todo o espaço necessário ao improviso.

"Foram eles que compuseram a letra, o nosso papel foi apenas de puxar pelas ideias", conta Alexandre Curopos, recordando que até "uma espécie de rap" foi surgindo das sugestões do grupo.

Assumindo-se mais como orientador do Coro dos Vizinhos, Alexandre admite o gosto por "trabalhar com a comunidade", ver nascer projetos onde "o cantar tem algum propósito". A música, acredita, "pode ser uma oportunidade de agregação, de partilha, de criação de comunidade. Especialmente nesta geração".

Mais do que a socialização ou a promoção da memória, o Coro dos Vizinhos "permite que estejam juntas e fá-las ter, de certa forma, algum sentido de utilidade". São várias as formas de comprovar a necessidade que estes seniores sentem dos encontros – com os outros e com a música – a regularidade com que aparecem, mas também a abertura que se vai testemunhando.

Porque sem a música a vida poderia nem ser, como afirmava Friedrich Nietzsche, um erro. Mas seria, com certeza, mais só. Na Lomba, a música, já todos sabem, está mesmo ali, na porta ao lado.