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Nesta casa portuense fica bem bacalhau e frutos secos sobre a mesa. Há mais de 120 anos que assim é

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Decorar a árvore, montar o presépio, ver as iluminações nas ruas, encomendar o bolo-rei e ir à Casa Natal buscar o bacalhau e os frutos secos para a noite da Consoada. Há tradições que não só resistem como se fortalecem com o passar dos anos. Nesta loja centenária, o futuro assegurou-se com um regresso ao passado.

Conta a tradição da Roma antiga que cada fruto seco tem o seu simbolismo: as avelãs evitavam a fome, as amêndoas protegiam contra os excessos da bebida e as nozes eram associadas à prosperidade e abundância. Por isso fazem parte da tradição natalícia, numa celebração que se quer afastada de fome e pobreza. E por isso enchem o olho de quem passa pela montra do número 833, na Rua de Fernandes Tomás.

Ali, sim, é Natal sempre que o Homem quiser. Assim é, todos os dias, há 120 anos, desde que Agostinho Francisco Cabral abriu uma loja especializada, não apenas em frutos secos, mas também em bacalhau e azeite. Uma combinação de sabores que, inevitavelmente, remete o paladar para a época natalícia. Estava encontrado o nome: Casa Natal.

Desses primeiros anos, pouco resta. Os documentos originais terão desaparecido numa inundação e apenas uma lata de “Azeite Velhinho”, a marca registada pela casa, própria para doentes e pessoas com estômagos delicados, que se exportava em latas de 40 ou 50 litros para o Brasil, resiste como testemunha de uma história protagonizada por uma das mais tradicionais mercearias da cidade.

Quando a família de Nuno Rocha, o atual proprietário, comprou a sociedade, em 2015, já pouco havia da mercearia de antigamente. Diferentes mãos e demasiadas mudanças “descaracterizaram um pouco o espaço”, conta, recordando que, nos tempos áureos, “a casa não era aquilo nós encontrámos”.

E por isso se lançaram na missão de resgatar o passado da Casa Natal. “O que fizemos foi recuperá-la para aquilo que era a sua essência, a sua origem”, garante Nuno Rocha. O plano de recuperação e remodelação “implicou construir de raiz balcão e estantes”, mas também dar uso a algum do material antigo.

“Felizmente conseguimos fazê-lo muito bem, conseguimos recuperar o conceito de mercearia fina, mas incrementando com algo que já começava a faltar, fruto dessa descaracterização, que era uma ampla seleção de vinhos, de vinhos do Porto, de uma garrafeira de gama média e, acima de tudo, frutos secos”, conta o proprietário, que viu a Casa Natal ser integrada no programa municipal de proteção aos estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social da cidade, Porto de Tradição.

Estes últimos requerem algum esforço quando se quer dar primazia a produtos nacionais, devido “aos preços elevados”, mas, principalmente, “à produção insuficiente em território nacional para as nossas necessidades”. Mas Nuno não se cansa de dedicar bastante tempo a essa escolha.

Bacalhau é o rei da casa todo o ano

Apesar destas apostas, como em conservas de peixe nacional de alta qualidade e numa alimentação cada vez mais saudável, o rei continua a ser um: o bacalhau. Há quem venha de longe apenas para assegurar que a ceia da sua Consoada tem a qualidade garantida pela Casa Natal. “Ainda ontem tivemos aqui uma senhora, já com os seus 86 anos, que vem cá praticamente uma vez por ano para comprar o quê? O bacalhau”, partilha Nuno Rocha, acreditando que, para muitas pessoas “isso já faz parte da tradição, dos seus rituais natalícios”.

Durante a época de Natal, a casa chega a vender entre cinco a seis toneladas de bacalhau, o que, assume o proprietário, “pode parecer inacreditável, principalmente porque é todo vendido aqui ao balcão”, maioritariamente cortado manualmente para os clientes.

Ainda mais longe, o bacalhau da Casa Natal também não se cansa de viajar para o estrangeiro. Para os emigrantes, claro, mas para muitos turistas também que, “quando percebem a importância gastronómica que tem no nosso contexto, provam, gostam e depois voltam a contactar”. Bacalhau e vinhos são enviados para Inglaterra, Itália, Espanha ou Alemanha.

Além do retalho, a casa faz também revenda para muitas mercearias – no Porto e fora dele – o que representa cerca de 60% da faturação anual. Em algumas casas na cidade, a Casa Natal ainda entrega “as encomendas do mês” a clientes com uma tradição de 40, 60, 70 anos, que a vão passando de pais para filhos e netos.

Os tempos mais difíceis, sem surpresa, foram os do confinamento, que a aposta numa loja online teve pouca força para camuflar. Nuno Rocha acredita, ainda assim, numa boa relação entre o tradicional e o moderno: “o espírito da nossa recuperação foi ir buscar o conceito tradicional com peso, a alma da mercearia fina, e misturar com uma modernidade que nos permite fazer venda online, interagir com os clientes nas redes sociais, e também diversificar e ampliar a gama de produtos que vendemos”.

Os clientes da Casa Natal são atraídos pela qualidade, claro, mas também pelo espaço em si, “pelo aconselhamento, pela atenção”. Nuno Rocha acredita que “as pessoas que vêm aqui, em detrimento de irem às grandes superfícies, vêm com a convicção de que vão encontrar um produto de qualidade superior e um conselho honesto e valioso”. É uma casa portuense, com certeza.