Desporto

Na grande área da saúde, rola a bola para se fintar a doença

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A convocatória está feita: jogam por esta equipa diabéticos, obesos, hipertensos e portadores de outras tantas patologias, à partida inibidoras da prática desportiva. A estratégia do programa "Futebol Doce", promovido pela Associação de Utentes do Agrupamento de Centros de Saúde (AcES) Porto Oriental, é ir a jogo pela saúde, fintar a doença e conquistar a qualidade de vida. O Município apoia os treinos destes atletas em Paranhos, mas há vontade de pôr a bola a rolar nas quatro linhas de Campanhã e Bonfim.

Otília Leitão admite que "não percebia nada de futebol, nunca tinha dado um pontapé numa bola". Com 66 anos, diz que esta prática, que frequenta há um ano, a fez "mudar completamente", trazendo-lhe respostas e formas de lidar com a sua condição de saúde. Hoje, Otília já não é apenas a depressão crónica, a ansiedade, os problemas de pressão arterial ou da coluna.

"Divirto-me imenso", mas "também refilo", assume, neste que é "o meu refúgio, onde descarrego tudo o que é um bocadinho mau". "Havia coisas que eu sentia que não podia fazer, e hoje sinto que já consigo", reconhece, a propósito deste "recomeçar a praticar exercício físico".

O apito inicial deste "Futebol Doce" soou em 2018, dentro de um projeto de investigação da Universidade do Porto, com o apoio da FIFA e da Federação Portuguesa de Futebol, para estudar o impacto do exercício físico nos diabéticos.

Com os benefícios comprovados em matéria de envelhecimento ativo e com qualidade de vida, e com o apoio da Câmara do Porto, o projeto de investigação passou a um projeto de vida. De vida saudável para as mais de três dezenas de "atletas" que por aqui já passaram.

"Temos vários exemplos de pessoas que se sentem melhor, também por causa do convívio, por os fármacos deixarem de ter que ser tão agressivos e é também uma poupança grande em medicação para o Serviço Nacional de Saúde", considera o presidente da Associação de Utentes AcES Porto Oriental.

José Machado explica que o "Futebol Doce" "é para pessoas com a diabetes tipo 2, obesos e hipertensos, dos 55 aos 80 anos, que sejam utentes deste agrupamento". A garantia de aptidão para fazer parte da equipa é dada pelos médicos de família e não faltam os rastreios desportivos anuais. As captações para as equipas de Campanhã e Bonfim começam em janeiro.

[Este] é um resumo feliz do que é a nossa estratégia no âmbito do Plano Municipal de Saúde

Por seu lado, a vereadora da Saúde e Qualidade de Vida reforça que "se há programa que nos entusiasma apoiar, que é um resumo feliz do que é a nossa estratégia no âmbito do Plano Municipal de Saúde, é este".

Confiante na contribuição do programa "não só para melhorar a saúde física, mas também a saúde mental destas pessoas", Catarina Araújo admite ser "absolutamente fascinante ouvir estas histórias, a experiência de vida destas pessoas, o como, aconteça o que acontecer, este é um treino ao qual não podem e não querem faltar".

Por isso, a também responsável pela área do Desporto, garante o reforço, o aprofundamento e o amadurecimento do apoio do Município: em 2024, vão começar a ser trabalhadas "questões da capacitação na área da nutrição".

Os grandes ganhos são, acima de tudo, emocionais

A tática da boa disposição ao ataque

Já na casa dos 80, e sem vontade de deixar de jogar tão cedo, Joaquim Costa aconselha "toda as pessoas, em vez de estarem sentadas nos cafés a dar cabo da saúde, a virem praticar connosco".

Além de "ajudar a que uma pessoa tenha uma vida mais saudável", beneficiando aqueles que, como ele, são hipertensos ou até possam sofrer de Síndrome de Ménière, este é o jogo que traz, acima de tudo, "a amizade" e o "convívio com pessoas da minha idade".

A tática do treinador é apenas pela boa disposição, mas não estaríamos a falar de futebol se os ânimos se não exaltassem com a vontade de ganhar. Há sempre quem tenha o estímulo para correr e se ponha, por isso, em risco de levar um cartão amarelo. Este jogo joga-se a andar.

Também não vale chutar a bola acima da linha da cintura e cada atleta só pode dar três toques consecutivos na bola. Tudo pela segurança dos jogadores, que, neste campo, explica André Coelho, "fazem exercícios muito parecidos com os das equipas de futebol, mas adaptados às necessidades e capacidades deles".

No final do jogo, garantidos os "novos amigos, novas rotinas, um novo sentir, uma nova forma de estar na vida", o treinador não tem dúvida de que "os grandes ganhos são, acima de tudo, emocionais". "Temos aqui pessoas que não tinham uma vida social e física muito ativa e com isto essa realidade alterou-se bastante", reflete André Coelho, reforçando que, "em termos de impacto social, isto é muito forte.

Sair do sofá é meio golo marcado

Em dias de treino, há uma presença constante nas "bancadas". Uma médica e duas enfermeiras acompanham as movimentações destes jogadores de "futebol a andar" para monitorizar os vários parâmetros de saúde de cada um: do peso à hipertensão, da hemoglobina glicada à dimensão cardiovascular. E o que veem são mudanças positivas, que incluem a diminuição do sedentarismo e a revitalização psicológica.

"Eles adoram, sentem-se muito mais felizes, motivados para fazer exercício físico", reconhece Ana Morais. E a colega de equipa, Ana Isabel Pereira, acrescenta o "papel muito importante que o centro de saúde tem a encaminhar os utentes para este projeto". "Este é um trabalho muito comunitário. Ao estarmos presentes detetamos situações de pessoas que precisam de uma vigilância mais apertada, quer das equipas de saúde familiar, quer de especialidades, e nós fazemos esse encaminhamento porque temos um trabalho muito direto e muito próximo com os utentes".

Enfermeira especialista na área da reabilitação, Ana Isabel Pereira admite não ser "muito normal as pessoas na terceira idade iniciarem uma atividade física, tem a ver com o perfil da população portuguesa". Por isso, o "Futebol Doce" é, também, "uma forma de mudar a culturalidade".

O próprio diretor do ACES Porto Oriental considera este "é o melhor de dois mundos": o dos benefícios para a saúde e "o do associativismo, sendo que isto é muito importante porque é algo que vem dos utentes". Álvaro Pereira acrescenta, ainda, como esta prática regular "acaba por criar um apoio social". "Quando alguém falta, vai-se perceber porquê", criando uma "sinergia muito interessante", sublinha.

Se não fosse isto, talvez estivesse pior. A gente aqui esquece-se de tudo, isto é metade de um medicamento

Manuel Azevedo sempre praticou desporto, mas a saúde e a reforma quase o empurraram para este sedentarismo. É diabético e, antes de chegar aos treinos de "futebol a andar", estava quase na obesidade. Ao final dos primeiros treinos, "comecei a emagrecer, a ter as análises impecáveis", conta.

Aos 68 sofre, também, de fibrose pulmonar. Nem isso o para. "Tenho o problema de abafar e ter que descansar mais do que os meus colegas, mas estar aqui ajuda-me", afirma, com o aval dos médicos, perante os bons resultados. Manuel acredita que "se não fosse isto, talvez estivesse pior".

Como os colegas, admite que fazer parte desta equipa "é também uma ajuda psicológica". "A gente aqui esquece-se de tudo, isto é metade de um medicamento", garante. E uma vitória para a vida.