Sociedade

Na escola, no recreio e para lá dos muros há um Porto que se constrói inclusivo e intercultural

  • Cláudia Brandão

  • Notícia

    Notícia

A interculturalidade é, cada vez menos, uma palavra desconhecida para os mais novos. Na escola, no recreio e nas brincadeiras na rua, partilham a cidade com crianças e jovens de diferentes culturas e percebem a riqueza que atenua as diferenças entre ciganos e não ciganos. Este é o trabalho que o Município do Porto tem desenvolvido desde 2019 através do projeto de Mediadores Municipais e Interculturais, inserido no Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (POISE) e em articulação com o Alto Comissariado para as Migrações e outras organizações sociais, junto das comunidades ciganas, mas também dos migrantes, no caminho para uma cidade cada vez mais inclusiva, onde o conceito de comunidade seja um singular construído de diversas pluralidades.

“Bom dia a todos! Sejam bem-vindos a mais uma emissão da Rádio Escola. Hoje estamos aqui com o Bruno Prudêncio do projeto Mediadores Municipais e Interculturais”. A emissão daquela manhã, na Escola Básica Manoel de Oliveira, em Aldoar, serviu para que todos conhecessem melhor a cultura cigana. Para a Maria, a Miriam e a Alice, a surpresa veio mais pelo que têm em comum com os amigos ciganos do por aquilo que os separa. “O que me surpreendeu mais é a importância da família”, admite Alice, de 14 anos. “Não acho que sejam assim tão diferentes de nós”.

O trabalho que o mediador municipal tem desenvolvido na escola “ensinou-nos a quebrar algumas barreiras”, afirma Maria que, aos 13 anos, assume que “às vezes falamos com as pessoas e não sabemos o que elas nos podem ensinar. São portugueses como nós. Têm tradições diferentes, mas isso não os difere”.

Bruno Prudêncio é, como sublinha, “português de etnia cigana” e um dos três mediadores que o Município do Porto chamou para fortalecer a ligação entre as comunidades ciganas e a não cigana. Certo de que “é necessário percebermos o que é a interculturalidade numa cidade cada vez mais globalizada”, o estudante finalista de Educação Social tem o foco virado para o trabalho na comunidade escolar.

Nos alunos, sim, mas nos professores também “para que estejam preparados para as diferenças, que não nos afastam, mas nos enriquecem, também a nível cultural”. Pela mão de Bruno Prudêncio, “os próprios docentes já têm vontade de conhecer um pouco mais e a escola vai começar a introduzir conceitos de diferentes culturas para que os alunos possam aproveitar isso para o seu contexto escolar”.

A primeira perceção das crianças, diz o mediador, “tem sido, naturalmente, de estranheza porque estamos a falar de um projeto que é pioneiro no Porto”. No entanto, “depois começam a entender que, afinal, somos todos portugueses, a nossa cultura é tão portuguesa como a da sociedade em geral”.

Para o vereador com o pelouro da Coesão Social, era importante para o Município criar nas escolas “as condições para a diversidade cultural, para a aceitação dos valores, da tolerância. É muito importante conhecermos a cultura de cada um e, nessa diversidade, podermos diversificar aquela que é a animação da cidade, mas também as vivências em comunidade e potenciar, sobretudo, esta grande diversidade e fazer dela um fator de união e de aceitação para o diferente”. “Tem sido um trabalho extraordinariamente importante para, efetivamente, tornar a cidade mais coesa”, acredita Fernando Paulo, a propósito do projeto que surgiu como instrumento de operacionalização da estratégia da Rede Social do Porto e do Município, inscrito no Plano de Desenvolvimento Social 2019/2021 e no Plano Local para a Integração das Pessoas Ciganas.

Desconstruir assuntos sérios em brincadeiras de recreio

Mas a escola não é apenas a sala de aula. Os alunos do 3.º ano da Escola EB1 do Viso estão a dar os primeiros passos para a apresentação de uma peça sobre a comunidade cigana. Mas há coisas que já sabem de cor: o que é a interculturalidade, por exemplo. Verónica Alves trabalha com as crianças “as questões emocionais” e, dentro destas, “o respeito e o conhecimento do outro”.

Tudo pode começar numa brincadeira no recreio. “Houve uma menina que não queria brincar e as outras crianças disseram que ela não brincava por ser cigana”, conta a mediadora da Asas de Ramalde, que sabe como os pequenos conflitos entre jovens de culturas diferentes podem começar. “Sentámo-nos todos e estivemos a falar sobre isso”.

Para a mediadora, esta “desconstrução de estereótipos que eles, mesmo sendo tão pequenos, já têm associados” é muito importante. “Desconstruir e ver que, passados uns meses, eles já estão a brincar todos juntos, já vão chamar todos os colegas. Esse é o propósito da interculturalidade: a interação entre todos”, garante.

O trabalho de mediação feito pela assistente social vai até junto das famílias, como aconteceu para perceber as necessidades das crianças quanto ao ensino em plataformas digitais, mas também para conversar com os pais sobre a importância de os filhos frequentarem a escola. “Muitas vezes é isso que falta, o diálogo”, acredita Verónica. “E daí o nosso papel como mediadores seja tão importante, nós somos facilitadores e a ideia é promover o diálogo entre ambas as partes”.

A minha escola é a rua

E se a escola não é apenas a sala de aula, nem sequer os muros à sua volta, para alguns a escola é a rua. Enquanto jogam à malha ou às cartas, os jovens que vivem no Cerco, uma larga maioria de etnia cigana, já aprenderam, quase sem se aperceberem, as regras mais básicas da matemática.

Licínio Fernandes é de etnia cigana, trabalha no Espaço T e é o mediador municipal no bairro. Em conjunto com Tiago Lobo, da Teach for Portugal, tem um sonho muito concreto para ali ir quase todos os dias: “viemos para a rua porque o nosso objetivo é combater o absentismo escolar”, partilha. Os dois propuseram uma alternativa, ou melhor, um “Cerco Educativo Alternativo”, projeto que segue a metodologia de trabalho educativo de rua.

Se os alunos não vão à escola, a aprendizagem sai dos muros e vai até eles, “sem impor uma estratégia, tentando partir daquilo que são os pontos fortes deles”, explica Tiago Lobo. Tudo começou com os dois a jogar basquetebol no campo que existe à entrada do bairro. Os jovens começaram a aproximar-se e a ligação ganhou os primeiros laços. Desde outubro de 2019, já conseguiram chegar a mais de 80 crianças, entre os seis e os 16 anos de idade.

Licínio e Tiago não querem que os jovens se afastem ainda mais da aprendizagem. Por isso, trabalham em articulação com os professores, a quem pedem os trabalhos de casa. Depois, sentam-se todos juntos para uma ajuda. O absentismo poderia ter vivido dias mais difíceis durante a pandemia, com o ensino à distância, porque, como explica Licínio Fernandes, “a maioria da comunidade cigana não tem meios para participar nas aulas online”, não fosse este trabalho de mediação que fazem.

Ainda que já tenham conseguido a proeza de serem procurados pelos próprios alunos, em alguns casos, vão mesmo bater à porta de casa. Em vez de desistir de alguém, preferem mudar a abordagem e falam num “efeito de 30% de redução de faltas”. Pelo meio, há sempre os jogos onde se trabalham, além da matemática e da leitura, outras valências: a persistência, a criatividade, a ação em equipa, o controlo das emoções. E se assiste ao entusiasmo das pequenas conquista.