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Memórias Invictas: "O Porto é uma cidade sossegada, mas que se move, com muita energia", diz o arquiteto Siza Vieira (1.ª parte)

  • Paulo Alexandre Neves

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O Porto. dá hoje início a uma nova rubrica: Memórias invictas. Entrevistas com personalidades, de todas as áreas, e que guardam histórias pessoais e da cidade únicas. Álvaro Siza Vieira recebe-nos no seu escritório. "É o primeiro dia que venho aqui, depois de uma gripe", atira, para início de conversa. "Acho que é um vírus que anda por aí. Deita-nos muito abaixo. É um vírus mau", acrescenta, enquanto acende um primeiro cigarro (ao longo da conversa foram três). Nesta primeira parte fala da sua curta carreira de jogador de hóquei patins, no Infante de Sagres, da escolha pela Arquitetura, da influência que tiveram alguns arquitetos na sua formação - sobretudo, Carlos Ramos e Fernando Távora -, da cidade e do ambiente político que se vivia antes da revolução e dos primeiros anos de atividade, com o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) - que durou entre 1974 e 1976. Prémio Pritzker 1992 na primeira pessoa.

Dois pormenores que o acompanham sempre: os desenhos, que dão origem aos cadernos de esquissos, e os cigarros. São os seus companheiros inseparáveis?
Os desenhos acompanham qualquer arquiteto, o tabaco nem todos.

Fuma já há muitos anos?
Comecei tarde, aos 20 anos. Naquele tempo usual era começar aos 12. Não se falava dos malefícios do tabaco. Era coisa normal. Agora, nesta idade não vale a pena desistir.

Perdeu-se um grande jogador de hóquei patins?
(sorrisos) Perdeu-se um jovem jogador júnior. Tive de parar porque o médico achou que era perigoso para os olhos. Sou míope e convenceu o meu pai que era um desporto perigoso. Ainda joguei, uma vez, a pedido do treinador, na clandestinidade. Nessa altura, o hóquei patins era tão popular que até os jogos de juniores tinham direito a artigo de jornal. O treinador para convencer-me a jogar deu instruções ao jornalista para colocar o meu nome como "NN". No dia seguinte, de manhã, o meu pai chamou-me e disse: "é só para dizer que o 'NN' não vai tornar a jogar". Acabou ali. Se seguiria a carreira não sei.

Lembra-se de jogadores de hóquei desse tempo?
No outro dia, num funeral, encontrei um rapaz da minha idade. Veio cumprimentar-me, mas eu não me lembrava quem era. 'Eu era o teu guarda-redes', disse-me. Jogávamos no Infante de Sagres. Havia um jogador muito bom, o Agostinho, e o treinador, o Laurentino. Perguntei-lhe pelos outros. Tinham morrido todos, só menos eu e ele. Já estamos a mais, temos de ter cuidado.

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As pontes explicam o Porto

A escolha pela Arquitetura foi pacífica?
Sim, mas, realmente, quando entrei para a escola [de Belas Artes do Porto], a minha ideia era ser escultor. Mais uma vez, o meu pai chamou-me e disse: 'não vás para isso. É preocupante. Carreira, futuro'. Na altura, a ideia era de que o escultor era um boémio, com vida difícil. Se tivesse ido para escultor julgo que estaria melhor, mas não sei como iria viver. Encontrei a escola numa fase muito boa, em renovação, com um novo diretor [arquiteto Carlos Ramos], que veio de Lisboa. Foi uma felicidade para o Porto. Um grande diretor e um grande arquiteto. Escolheu uma nova equipa e muito bem. Uma ótima equipa - Fernando Távora, José Carlos Loureiro, Mário Bonito, entre outros -, gente muito nova, acabada de formar. Lembro-me que, todos eles, entraram sem receber um tostão, por pura militância. Depois do contato com essa gente esqueci-me da escultura e dediquei-me, por inteiro, à arquitetura.

Que influência tiveram os arquitetos Carlos Ramos e Fernando Távora na sua formação?
Permitiram a livre condução dos caminhos do ensino da Arquitetura no Porto. Coisa que era difícil em Lisboa porque estava demasiado perto do poder. Não é por acaso que o Carlos Ramos veio para o Porto, ainda que não fosse propriamente um revolucionário. Era uma pessoa de grande inteligência, talentosa, conhecia o que se passava na Europa, com o movimento de renovação geral na arquitetura.
Em Portugal, houve também uma tentativa de renovação, com o ministro Duarte Pacheco, a quem se deve a presença, então, de arquitetos nas câmaras e também na Exposição do Mundo Português [em Lisboa, 1940]. Chamou os melhores e recém-formados, como o Fernando Távora. Uma pessoa de grande cultura, muito interessado pela história, viajado, um dos membros do Centro de Inovação em Arquitetura e Modos de Habitar (CIAMH), que tinha como ideia a 'tábua rasa', o 'homem novo', a 'cidade nova'. Trouxe com ele a arquitetura social.

Como era o Porto nessa altura?
Não tinha o movimento que tem hoje, nem por sombra. Dizia-se que era 'a cidade do trabalho' e era. E havia um aspeto muito relevante: o problema das ilhas. No século XIX construíram-se as pontes – D. Luís, D. Maria – e, muito mais tarde, as do [engenheiro] Edgar Cardoso. As pontes explicam o Porto e o seu desenvolvimento. É o que é porque está perto do mar, tem o rio Douro, a necessidade de ligar as margens. Foi essa ligação longitudinal, o comércio, a atividade e uma primeira industrialização que fizeram a cidade desenvolver-se. Na altura, a força do Porto via-se pela construção das pontes. No fundo, o Porto é uma cidade sossegada, mas que se move, uma cidade com muita energia, muita atividade.

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Participava nas tertúlias?
Havia, por parte dos estudantes de Belas Artes, um grande sentido da mudança e que estava a acontecer na escola. Reuniam-se nos cafés, por exemplo, no Majestic. Com alguns amigos mais chegados formamos um escritório, por cima do Imperial. Aí, conversávamos sobre os assuntos que nos interessavam.

Eram conversas sobre tudo, incluindo o ambiente político que se vivia na altura?
Entrei na Escola de Belas Artes do Porto em 1949. Lembro-me de colegas que pertenciam a uma clandestina associação de estudantes. Era uma coisa proibida.

Nunca teve problemas com a PIDE?
Estava obcecado com os estudos. Os meus interesses dirigiam-se apenas para a arquitetura. Embora participasse nesses debates, nunca fiz parte das associações de estudantes.

O SAAL centrou o debate sobre a cidade, mexendo com muitos interesses

O Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) - que durou entre 1974 e 1976 - foi o culminar de toda essa tentativa de mudança na arquitetura portuguesa?
Antes de 1974 havia uma grande insatisfação nas universidades pelo não prosseguimento das reformas no ensino. Havia quase uma recusa ao desenho, ao projeto. Isso teve a ver com uma parte da atividade do SAAL, ou seja, de recusa ao projeto. Havia uma interpretação para alguns, não para mim, que se resumia na frase: 'o arquiteto é a mão do povo'. É bom lembrar que, no Porto, 50% da população vivia em condições muito más. O SAAL foi iniciativa, sobretudo, do arquiteto Nuno Portas [secretário de Estado da Habitação e Urbanismo no I, II e III governos provisórios pós-25 de Abril]. Muito organizado, ao contrário do que algumas pessoas pensam, que envolveu muitos estudantes. Não se pode dizer que fosse algo de apetitoso para os arquitetos porque era muito exigente, mal pago, em parte mal visto, o que levou ao seu cancelamento, ao fim de dois anos. Mas foi interessantíssimo porque se verificou que todas as pessoas podiam participar nas ideias para a 'casa' e que, em determinada altura, passou a ser um debate sobre a cidade. Eram assembleias difíceis, com 300 pessoas. Havia quem chamasse aos arquitetos burgueses. Depois, foi-se criando confiança entre as pessoas. Comecei com uma brigada em S. Vitor [Bonfim].

Ainda se lembra dessas brigadas?
Vivi essa situação intensamente. Entrei porque um grupo de estudantes, num debate interno da escola, pediu-me. Pugnavam pelos aspetos positivos da arquitetura, por um debate real sobre a arquitetura, a sua autenticidade, eficácia, o interesse social.

Hoje, recordando esses tempos, foi excesso de voluntarismo ou um sonho desfeito para jovens arquitetos quando o Governo decidiu acabar com o SAAL?
Correspondia ao que era já um debate interno que existia na Escola de Belas-Artes do Porto. Havia uma coincidência da arquitetura portuguesa com o espírito geral que se vivia na Europa. O movimento em Portugal encontrou apoios lá fora. Conheci maior parte dos amigos estrangeiros porque vieram cá ver a Revolução. Descobriram uma coisa completamente desconhecida por causa do isolamento a que estávamos votados: afinal, em Portugal, também havia alguma obra de arquitetura com interesse. O SAAL centrou o debate sobre a cidade, mexendo com muitos interesses. Os arquitetos que nele participaram foram marginalizados. Para mim não foi um desastre grande, embora deixasse de ter obras, de imediato, em Portugal. O programa interessou muito mais fora daqui. Aliás, o primeiro convite que tive para sair veio de Barcelona, para participar nos "pequenos congressos".

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(continua)