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Memória de Maria de Sousa evocada em sessão emotiva na Feira do Livro do Porto

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O percurso, as palavras e a personalidade de Maria de Sousa foram evocados por quem privou de perto com a imunologista e poeta, numa sessão emocional no derradeiro dia da Feira do Livro do Porto.

O auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett encheu (dentro das limitações impostas pelo plano de contenção da pandemia) na tarde de domingo, para assistir à evocação de Maria de Sousa. Poeta homenageada da edição de 2020 da Feira do Livro do Porto, honra que partilhou com Leonor de Almeida, a também cientista e imunologista foi recordada por quem melhor a conheceu, nas suas diversas facetas: científica, pessoal, intelectual, poética.

A sessão, moderada por Anabela Mota Ribeiro, partiu das palavras de Maria de Sousa para uma conversa sob o signo da memória. "Os momentos muito importantes não se podem escoar. Tem de se pôr uma rolha no rio. Tem de se fazer parar o rio, senão aquilo vai tudo", disse a cientista e poeta, que viveu entre 1939 e 2020 - faleceu em abril, vítima de Covid-19.

"Pôr uma rolha no rio parece uma ideia simultaneamente excessiva, impossível, e poética e essencial. Vamos pôr uma rolha no rio, tentar captar a memória de Maria de Sousa", afirmou Anabela Mota Ribeiro, selecionando "entusiasmo" como "a palavra certa para começar a falar da Maria. Esta manhã pude assistir a uma lição da Hélia Correia sobre a Antígona, e aprendi que a palavra entusiasmo significa ter o deus dentro de si", disse.

Numa sessão em que se partilharam histórias e episódios e também foram lidos poemas de Maria de Sousa, à qual assistiu o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, a primeira intervenção pertenceu a Rui Horta, que era um jovem bailarino quando viveu anos em casa da cientista, em Nova Iorque. "Para mim ela era a Maria Ângela, porque era lá de casa. O meu pai era professor da Maria. Quando a minha mãe faleceu, a Maria Ângela pôs a chave de casa dela em Nova Iorque nas minhas mãos. E eu fui para Nova Iorque por três meses, e acabei por ficar dez anos. E assim começou a parte mais importante do meu percurso em dança", recordou.

"Ela deu-me aquele empurrão de que eu precisava para sair de Portugal. O meu livro de cabeceira toda a vida tem sido um livro que a Maria me pôs nas mãos. É um livro que me tem seguido a vida toda e que eu já encenei. São as 'Memórias de Adriano', de Marguerite Yourcenar. A Maria ofereceu-me esse livro e foi uma revelação. A Maria era uma intelectual. Era uma pessoa culta, muito ligada aos eventos culturais, aos museus, à vida intelectual de Nova Iorque", acrescentou Rui Horta.

A vinda para o Porto

Seguiu-se Sobrinho Simões, cientista da mesma geração de Maria de Sousa, apesar dos anos de diferença, e seu contemporâneo no Porto. "Eu encontrei-a fisicamente pela primeira vez em 1980, estávamos a jantar quando houve o desastre e morreu o Francisco Sá Carneiro", começou por lembrar, abordando depois o processo de mudança da cientista e poeta de Nova Iorque para a cidade Invicta: "Ela, quando vem para o Porto, veio porque achava muito interessante a ideia do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar. Encontrou um ambiente especial no Porto. Ela estava muito acima, era cosmopolita, e tinha uma autoridade extraordinária. Estava acima, e mandava. E era muito brutinha", notou, para riso do auditório.

"Nunca ficou portuense. Era uma estrangeirada virtuosa. A Maria era muito culta e escrevia maravilhosamente. Tinha uma organização mental extraordinária", acrescentou Sobrinho Simões.

Maria Manuel Mota, cientista cuja vida foi marcada, ainda aluna, pela "Prof. Maria", como era chamada, reconheceu que a cientista e poeta tinha um temperamento particular. E ilustrou com um episódio: "Eu era uma miúda de 21 anos, para aí, quando a encontrei pela primeira vez. Ela falou-me sempre em inglês. Eu sempre fui boa aluna, mas não a línguas. Nunca tinha sequer saído do país. Fizeram-me uma entrevista toda em inglês, portanto eu estava aterrorizada. Não faço a mínima ideia do que disse. Mas, passadas 48 horas, recebi a mensagem que tinha entrado para o mestrado de Imunologia".

"A Maria de Sousa não era uma pessoa que nos deixava à vontade, não era. Mas, em todas as vezes que estive com ela, aprendi sempre imenso. De cada vez que tivemos uma discussão, e tivemos várias, porque não sou de me ficar, a verdade é que aprendi sempre imenso. Foi incrível, foi realmente uma pessoa que fez toda a diferença na minha vida. Mas não era uma pessoa simples", admitiu.

Companheira de Maria de Sousa no júri do Prémio Pessoa, Clara Ferreira Alves recordou a cumplicidade que surgiu entre as duas. "Ela gostava de uma boa argumentação intelectual. E tínhamos autores de que gostávamos em comum. Havia uma espécie de cumplicidade. A nossa amizade era sobre autores e lugares de que gostávamos. Mas o essencial da Maria não mudava muito, e quando discordava de mim continuava a ser ríspida e dava descomposturas a toda a gente", disse.

Contudo, esse traço de personalidade não escondia a "grande qualidade humana e intelectual" de Maria de Sousa. "Ela era grande com os seus defeitos. Não era perfeita, mas era uma grande pessoa. Era uma pessoa que não tinha um átomo de mediocridade. Havia pessoas que ela genuinamente ajudava porque achava que tinham mérito. Tinha um grande sentido de justiça", acrescentou Clara Ferreira Alves.

"Grandeza na dor"

"A Maria de Sousa soube que ia morrer com Covid-19. Com a inteligência dela, logo no princípio disto, ela disse-me: o meu risco é enorme, qualquer coisa que falhe no protocolo de desinfeção, vai tudo. Ela previu que a situação ia ser atroz nos Estados Unidos", contou ainda a jornalista e escritora, descrevendo o poema "Carta de amor numa pandemia vírica", o último de Maria de Sousa (que já tinha encerrado a sessão do ciclo Quintas de Leitura), como "magnífico". "É uma coisa alucinante de grandeza na dor. De alguém que vê a sua morte e sai disso para ainda opinar sobre os vivos que ficarão depois dela. Foi isso que ela fez", vincou.

Na intervenção mais emocionada da sessão, a poeta Hélia Correia recordou a amizade que, através da poesia, a uniu a Maria de Sousa: "Nós conhecemo-nos tarde. A Maria já tinha feito um poema a propósito de um poema meu, uma espécie de diálogo. Eu chamava-lhe a minha amiga antiga, porque tinha a sensação que a conhecia há muito tempo. E ela... Estou a ficar arrepiada. E ela chamava-me amiga de todo o tempo".

"Ela mandava-me poemas. Era aquilo a que se chama um espírito renascentista. Era a pessoa da ciência e que aplicava uma visão poética, apaixonada, à ciência. E era a pessoa das letras, a poeta. Tinha uma sensibilidade poética imensa. Mas tinha muito mais do que isso. Era uma relação muito situada no afeto. Ela às vezes telefonava-me e, quando eu atendia, ela dizia: 'Não é nada. É só para saber que você existe'. Vou-me calar, senão daqui a pouco estou a chorar", concluiu Hélia Correia.

Com emoção no palco e na assistência, a evocação da vida preenchida de Maria de Sousa foi a justa homenagem a uma das mais ilustres personalidades da Academia do Porto, reconhecida investigadora em Portugal e no mundo, mas também poeta de sensibilidade particular.