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Júlio Dinis vai ser o escritor homenageado da Feira do Livro do Porto em 2021

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Às últimas horas da edição 2020 do festival literário, o presidente da Câmara do Porto anunciou, na Rádio Estação, que a Feira do Livro do próximo ano vai celebrar a vida e obra do escritor portuense do século XIX Júlio Dinis. O momento serviu também para o autarca, juntamente com o coordenador programático da Feira do Livro do Porto, Nuno Faria, fazer um pré-balanço desta edição, erguida num ano absolutamente excecional.

Rui Moreira não conseguiu conter a novidade, instado por Nuno Faria, também diretor do Museu da Cidade. "Depois de ter pensado no assunto, e de ter ouvido algumas pessoas - tu foste [Nuno Faria] uma das pessoas que ouvi e também o Guilherme Blanc [diretor de cinema e arte contemporânea da empresa municipal Ágora - Cultura e Desporto do Porto] - quero que a próxima Feira do Livro seja dedicada a um escritor que, ainda que não seja completamente esquecido, é um escritor cujo mérito carece de reconhecimento, que é Júlio Dinis", revelou o autarca esta tarde, na rubrica "Escrita Escuta" da Rádio Estação, propositadamente criada no âmbito da Feira do Livro do Porto 2020 (pode ouvir a entrevista na íntegra AQUI).

A escolha surgiu por várias ordens de razão, detalhou. "Em primeiro lugar porque acho que Júlio Dinis é um escritor muito mal compreendido, é um escritor mal lido e é um escritor que tem uma enorme ligação ao Romantismo", período da história que, defende, teve na cidade do Porto "um papel muito importante".

"Júlio Dinis é um escritor maravilhoso, que temos de lançar novamente (...) Acho que pode abrir de facto caminho a uma Feira do Livro mais uma vez surpreendente, de um escritor que precisa dessa (re)descoberta", considerou Rui Moreira, afiançando que o trabalho da próxima edição começa "já partir de amanhã, exatamente porque não iremos pelo caminho mais previsível e mais fácil".

100 mil visitantes na edição da Feira do Livro do Porto 2020

Embora o balanço final ainda não esteja efetivamente fechado, o presidente da Câmara do Porto apontou que "teremos qualquer coisa como 100 mil visitantes ao fim do dia de hoje [domingo], o que é extraordinário na circunstância atual".

A inevitabilidade da conversa tocar neste ponto não foi escamoteada. Logo no introito, Nuno Faria questionava o interlocutor sobre a forma como o autarca viveu estes últimos meses, que classificou de "meses de grande hesitação". Rui Moreira confidenciou que a organização do certame nunca esteve em causa. "Definimos este horizonte, apontamos para lá a bússola e felizmente conseguimos fazê-lo", regozijou-se. Recordando que o Porto foi um dos primeiros municípios a encerrar as atividades culturais com contacto social devido à pandemia, o presidente da Câmara estabeleceu, já nessa altura, "objetivos e uma ambição". Ambição essa que passava pelo "regresso à atividade cultural e ao contacto social com a Feira do Livro", referiu.

"Fizemo-lo pesando e sopesando um conjunto de circunstâncias. Em primeiro lugar, sabemos que ela decorre num espaço público, mas apesar disso é um espaço vedado, com condições para garantir o controlo do número de visitantes. Ao mesmo tempo, a Feira do Livro tem uma característica diferente de qualquer outro programa cultural da Câmara, porque é mais transversal: temos música, poesia, leitura, mas temos também a atividade comercial ligada ao livro. Pressentíamos já na altura que iria ser um setor muito fortemente afetado", continuou o autarca, sublinhando que neste processo os expositores depositaram "total confiança" no Município.

Os resultados, congratulou-se Rui Moreira, estão à vista. "Acho que foi a vez em que a Feira foi melhor promovida, porque também não podia falhar. E também a própria magia do espaço ajudou. Não é um espaço ignoto", classificou.

Nuno Faria, que pela primeira vez assumiu a responsabilidade de programar o festival literário, acompanhou o autarca. "É de facto um espaço e um evento muito especial, porque transversal e bastante inclusivo, que procura a pequena escala também. É um evento em que os livreiros se sentem bem-vindos". 

Feita em condições muito particulares e difíceis, com limitação de entradas, criação de circuitos e sinalética especial, o coordenador programático aproveitou, sobre este aspeto, uma mensagem de Rui Moreira no arranque da conversa. "Queremos que este evento seja um horizonte de esperança", citou o responsável, frisando que essa mensagem se dirige a todos, mas particularmente aos livreiros, editores, alfarrabistas e aos músicos em especial.

"Lembro os Concertos de Bolso, programados pelos Maus Hábitos, uma das novidades desta edição, como incentivo para que estas bandas possam continuar a tocar e sintam que são desejadas", destacou Nuno Faria.

O que mudou em sete anos

O festival literário, que é hoje um dado adquirido para a cidade, resultou de um modelo de organização implementado pela Câmara do Porto há apenas sete anos.

"Quando cá chegámos, em 2013, não havia Feira do Livro há dois anos. Tinha-se feito um evento mais ou menos semelhante, na Avenida dos Aliados, mas que de facto não tinha nenhum conteúdo cultural. Era, digamos, uma exposição de livros à venda", descreveu Rui Moreira, que recordou a rutura entre o Executivo Municipal do seu antecessor, Rui Rio, e a APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros).

"Herdei essa situação de conflito e tentei resolvê-la com o vereador Paulo Cunha e Silva". As negociações seguiram-se e estaria tudo liminarmente acertado para a APEL realizar a Feira do Livro na Rotunda da Boavista, algo que pessoalmente até nem agradava ao autarca, confessou. Mas houve um volte-face. "A APEL veio subitamente rasgar o acordo, pois considerou que a pessoa que a representava não estava habilitada a tomar decisões. Em sequência disso, a APEL apresentou ao Município condições supervenientes que eu não poderia, de todo, aceitar", revelou.

"Pareceu-me falta de educação e de princípio. Mas pareceu-me também, ao mesmo tempo, que nos dava a possibilidade de nos libertarmos definitivamente dessa tutela", partilhou o também vereador da Cultura, fazendo a este propósito a "ficha de cadastro" desta entidade. "A APEL é uma associação muito respeitável, mas que representa as grandes editoras, com muito pouco impacto junto dos mais pequenos, dos independentes, com uma visão muito restrita relativamente aos alfarrabistas, que são muito importantes na cidade. Basta perceber que estamos a celebrar 1820 e perceber a importância que já tinham nessa altura", sustentou Rui Moreira.

"Arriscámos. Percebemos que tínhamos a antiga Porto Lazer, agora empresa municipal Ágora, que sabia montar eventos, e que a fazer uma coisa, teria de ser diferente, que no fundo acrescentasse", referiu o autarca, confidenciando que sempre teve predileção pelos Jardins no Palácio de Cristal como local de acolhimento do certame.

"No fundo, queríamos um festival cultural, porque, hoje em dia, os hipermercados são feiras do livro tradicionais", constatou. A data do evento também foi alterada. "Mudámos de data, de junho para setembro. Fazer isto no fim do verão julgo que era uma altura interessante, coincidente com o regresso às aulas, mas que ainda reserva algum tempo livre para as famílias", refletiu.

Num ano atípico também pela ausência de chuva, Nuno Faria destacou "as duas grandes linhas de rumo desta edição. A primeira, "o esquecimento", espelhado na escolha da poeta homenageada, Leonor de Almeida, "que caiu um pouco no esquecimento e nas malhas da história, mas foi resgatada e reinscrita na contemporaneidade através de duas edições, resultantes do trabalho maravilhoso de Cláudia Clemente", sublinhou o coordenador.

E, o segundo mote, intrinsecamente ligado ao anterior, erigido "pela insurreição e sublevação" do 1820. "O programa foi interrompido e tomámos a decisão de retomá-lo na Feira do Livro", assinalou Nuno Faria, que considerou ser este um "ano horribilis", recordando que a celebração das comemorações dos 200 anos da Revolução Liberal, sob a égide de Pedro Baptista, iniciou precisamente no dia em que o pensador e professor faleceu.

Rui Moreira aproveitou a reflexão em torno do esquecimento e de 1820 para constatar que "Portugal tem uma grande dificuldade em não esquecer. Conseguimos rapidamente esquecer, mas não sei se perdoamos. Mas há uma desvantagem porque perdemos muita coisa pelo caminho. Quando esquecemos os nossos, esquecemos as referências, é uma parte de nós que desaparece", lamentou. Exemplificou esta ideia com o percurso da homenageada deste ano. "Com Leonor de Almeida, cuja investigação de Cláudia Clemente a Câmara do Porto patrocinou, conseguimos de facto perceber que havia uma grande poeta, que tinha-se esfumado, um pouco por sua vontade, mas também um pouco por todos nós".

Por outro lado, pensar a Revolução Liberal do Porto neste ano foi também marcante, considerou o autarca. "1820 é um momento de grande cidadania, momento talvez fundador para o muito que depois sucedeu em Portugal. A Feira do Livro onde naturalmente já iríamos tratar 1820, com a apneia que sucedeu no Porto e no mundo, deu-nos a oportunidade de concentrar aqui muitas das atividades que tínhamos pensado. Acho, de facto, que o livro do Professor Lopes Cordeiro vai ser recordado e, acima de tudo, não vai permitir que se esqueça aquilo que foi 1820", referiu Rui Moreira, aluindo à obra-catálogo desenvolvida a partir do acervo da exposição patente na Casa do Infante.

"Ainda ontem falava disso [na sessão das Conversa situadas "Poder & Poderes"]. Quando percebemos hoje a limitação de poderes enquanto cidadãos e eleitores (...), comparado com o que se passava há 30/40 anos atrás, hoje temos menos mão no nosso destino. O nosso destino envolve agora o futuro, o dos nossos filhos e o dos nossos netos", concluiu o presidente da Câmara do Porto.

Numa Feira do Livro em que "o primado foi dado à escrita e à escuta, à palavra dita ou palavra soprada", celebrou-se ainda a poesia, "sobretudo a escrita por mulheres", completou Nuno Faria, que neste relacionamento da escuta com a memória, ressalva "entendimento e tolerância", valores matriciais que distinguem a Feira do Livro do Porto no panorama cultural nacional e que a vão continuar a identificar como única no ano que vem, tempo de homenagem ao escritor Júlio Dinis.