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Histórias da cidade: vai-te embora velho, cumpriste mal, ficam esperanças no sorridente 2021

  • Isabel Moreira da Silva

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A frase original data de 1972 e pertence a uma ilustração de Cruz Caldas eternizada no diário “O Comércio do Porto” daquele ano, mas encaixa tão bem neste 2020, que o “Porto.” não resistiu a apropriar-se dela e a percorrer, também, algumas das geniais propostas gráficas de um dos maiores caricaturistas e ilustradores portugueses do século XX.

A crítica mordaz e o humor sagaz eram uma constante nas ilustrações de Cruz Caldas, nome que dispensa apresentações entre os portugueses que tiveram a oportunidade de seguir o seu trabalho.

Portuense de gema, António Pedro Barros Cruz Caldas foi colaborador do jornal mais popular da cidade: “O Comércio do Porto”. Entre 1966 e 1973 (dois anos antes da sua morte, em 1975) era presença assídua entre as páginas da publicação – extinta mais tarde, em 2005 – com cartoons sobre os mais variados assuntos.

Em particular, houve uma ilustração que ganhou fama e honras de tradição, qual timbre que marcava a despedida do ano velho e dava as boas-vindas ao novo. A cada edição de 31 de dezembro d’O Comércio do Porto, os leitores já esperavam ver as mais requintadas frases e traços do artista gráfico alusivos à passagem do ano, que nunca desiludiam.

No Arquivo Municipal do Porto, o “Porto.” encontrou quatro exemplos, entre 1969 e 1973. “Bem-vindo sejas, meu rapaz, que 70 traga mais vassoura!” retrata a passagem de ano de 1969 para 1970. O dizer escolhido não era de todo alheio à polémica vivida intensamente naquela época: aludia à falta de limpeza da cidade. O tema deu inclusive azo a outras ilustrações de Cruz Caldas, como aquela em que aproveitou a estátua “O Porto” para um peculiar pedido de socorro.

No ano seguinte, de 1970 para 1971, a ilustração combinava guerra e paz, com requintada ironia. A figura da pomba trazia paz – com todas as letras – mas também carregava o "Ano Novo" sobre o seu fino dorso. Este vinha com “um saco de projectos e promessas assombrosas” da ONU. Nessa altura, as Nações Unidas enfrentavam tempos turbulentos, que perigavam uma das suas principais “regras de ouro”, a manutenção da paz. Mundialmente, os conflitos propagavam-se num cenário de Guerra Fria. Também a nível interno, os diferendos com o Governo Português, devido à questão colonial, eram frequentes.

A terceira imagem de arquivo – e é aqui que nos retemos – refere-se à ilustração da passagem de ano de 1972 para 1973 (o Arquivo Municipal do Porto não tem disponível o ano precedente e o “Porto.” não conseguiu apurar se o exemplar em falta na cronologia continha a conhecida ilustração de Cruz Caldas).

A sugestiva frase, “Zé: vai-te embora velho, cumpriste mal, ficam esperanças no sorridente 1973”, acompanha uma ilustração povoada de pombas brancas, carregadas de diversas faixas com a palavra “paz”. Esta figura principal é “assombrada” pelo velho que - de tão velho - pouca mossa causa no quadro celestial, onde assume um papel secundário.

O regime do Estado Novo, a mais antiga ditadura europeia, era cada vez mais contestado, tanto mais que a partir do início dessa década de 70, a luta armada dos independentistas intensificava-se. Em novembro de 1972, uma resolução aprovada pela Assembleia Geral da ONU reconhecia a legitimidade da luta armada em África contra Portugal.

Em nada a situação de hoje se assemelha à daquele tempo, mas a verdade é que o copy (redação criativa) escolhido por Cruz Caldas produz um fabuloso paralelismo com o ano de 2020.

Fica também o exercício criativo de pensar como seria um cartaz concebido pelo artista gráfico à luz do ano que agora termina. Envolveria a imagem do vírus, máscaras e álcool gel? Nunca saberemos, mas a imaginação remete-nos para um desses possíveis cenários.

Por fim, ainda há registo da ilustração que marcou a passagem de ano de 1973 para 1974. “Ó velhinho, obrigado, não te incomodes. Eu sei o caminho, pois venho cá todos os anos…”. Pode espreitá-la aqui.

Breve biografia de Cruz Caldas

António Pedro Barros Cruz Caldas nasceu a 17 de dezembro de 1897 na Rua do Bonfim. Foram seus padrinhos de batismo a pintora Aurélia de Sousa e o escultor António Teixeira Lopes.

Em 1925, iniciou-se numa das principais áreas da sua carreira, a caricatura e a sátira de costumes, no semanário humorístico “Cocorocó”. No ano seguinte, esteve presente com três obras no Salão dos Humoristas Portugueses no Porto, uma das exposições que difundiram o movimento modernista em Portugal.

Ainda em 1926, desenhou a capa do livro “O homem que matou a atriz”, que foi um dos seus primeiros trabalhos como capista e ilustrador de livros, em que também se iria notabilizar.

Em 1927, deu início à sua colaboração com o Jornal de Notícias. Neste mesmo ano, casou.

Durante a década de 1930, o artista colaborou com outros jornais humorísticos da cidade: além do “Cocorocó” também com o “Maria Rita”. Trabalhou pela primeira vez para teatro, fazendo o cenário da revista “Porto à Vista”. Ao longo dos anos seguintes, continuou a coloborar para vários espetáculos.

Em 1934, passou também a trabalhar como publicitário, na Empresa do Bolhão, para a qual iria criar inúmeros anúncios a diversas marcas e produtos.

Continuou a publicar os seus cartoons e desenhos durante as décadas seguintes em várias publicações periódicas, como os matutinos “O Primeiro de Janeiro” e “O Comércio do Porto”, a revista “O Tripeiro”, entre outras. Ao longo da vida, caricaturou um sem número de figuras do desporto, da arte, da política.

Colaborou regularmente com instituições da cidade, como o Orfeão do Porto ou a Assembleia de Campanhã.

A Sociedade Nacional de Belas Artes reconheceu o seu mérito como caricaturista, atribuindo-lhe o Prémio de Caricatura Leal da Câmara em 1953 e, novamente, em 1956.

António Cruz Caldas morreu no Porto, em 1975.