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Histórias da Cidade: Uma loucura de amor, mas “doida não e não!”

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Filipa Brito

“Desapareceu uma senhora de mais de 40 anos, de estatura não alta. Usava vestido castanho­‑escuro, casaco preto, de abafo, romeira e peles, canotier de veludo preto, sem enfeites, e sapatos de verniz abotinados”. O anúncio no Diário de Notícias, com a data de 16 de novembro de 1918, escrevia as primeiras linhas de um escândalo que abalara a sociedade portuguesa: o internamento de Maria Adelaide Coelho da Cunha no Hospital Conde de Ferreira, dada como louca por ter fugido com o motorista. Uma história de amor e despeito, de honra e resiliência. Nunca de loucura. “Doida não e não!”

Herdeira do fundador do Diário de Notícias e senhora da alta sociedade, Maria Adelaide Coelho da Cunha terá largado o casamento com Alfredo da Cunha, e o luxo e os saraus culturais do Palácio de São Vicente, em Lisboa, para viver com uma “paixão furiosa” (como a própria descreveria) com Manuel Claro, o motorista do casal, bastantes anos mais novo.

Despeitado, o marido foi dar com eles em Santa Comba Dão e rapidamente deu resposta à afronta: internar, a 25 de novembro, Maria Adelaide no Porto, no Hospital Conde de Ferreira, o principal hospital psiquiátrico da cidade, então dirigido por Magalhães Lemos. Só uma doença mental, uma depressão, ou, como lhe chamavam na época, uma “neurastenia”, a poderia levar a cometer semelhante atitude. Presa na ala das criminosas, passou a primeira semana em isolamento, com o diagnóstico pelos médicos firmado de loucura, mas sem terapia ou medicação.

Apesar de estar sempre vigiada por uma criada pessoal, uma cúmplice dentro do hospício arranjou-lhe papel e caneta que Maria Adelaide usou para, até agosto de 1919, manter um diário e escrever cartas a Manuel Claro.

A primeira tentativa de fuga aconteceu em fevereiro. Nem a ajuda do amante, que lhe arranjara uma escada e a esperava do lado de fora, impediu que o marido a voltasse a encontrar e a devolvesse ao Conde de Ferreira. Desta vez, Manuel Claro foi acusado de rapto e violação, ficando preso na Cadeia da Relação. A Maria Adelaide coube um tratamento mais cruel no hospício, mas nenhuma tentativa de terapia.

Colocada perante a possibilidade de ser enviada para uma casa de saúde mental no estrangeiro, Maria Adelaide recusou e a família iniciou um processo judicial que a considerou, efetivamente, louca, incapaz de julgamento próprio e por isso sujeita às vontades do seu tutor, o marido. A decisão de “loucura lúcida” tem a assinatura – e o devido peso - de três dos maiores alienistas da época: Júlio de Matos, António Egas Moniz e José Sobral Cid.

Seria, mais uma vez, Manuel Claro a salvar Maria Adelaide. A partir da prisão, contratou um advogado para comprovar a ilegalidade do internamento compulsivo da senhora. Em agosto, o advogado e o governador civil do Porto, com ordens do Ministério do Interior, libertaram Maria Adelaide.

No Porto até que a morte os separe

Livre, a viver escondida em casa de conhecidos no Porto, publicou partes do seu diário, a que chamou “Doida, não e não!”, além de crónicas no jornal A Capital, e onde expunha toda a humilhação a que fora sujeita “pelo simples crime de amar”, trazendo o escândalo e a ilegalidade do internamento para a esfera pública.

“A sociedade nortenha é extremamente matriarcal e Maria Adelaide conseguiu angariar a simpatia de algumas mulheres da elite. Porque ela era a vítima do abuso de um homem orgulhoso, ainda para mais um lisboeta. Por mais que ele se tentasse vingar, agora ela tinha alguma proteção”, escrevia Manuela Gonzaga, autora de um livro sobre a vida de Maria Adelaide.

Foi a denúncia de Maria Adelaide Coelho da Cunha que levou o jornal a investigar outros casos de mulheres internadas no Hospital Conde de Ferreira como castigo das famílias. Com o assunto a chegar ao Parlamento, a lei muda para proteger estas mulheres. Em 1922, Manuel Claro era finalmente libertado da Cadeia da Relação depois de o sindicato dos motoristas se ter interessado pela história e pago as custas judiciais. O casal ficou a viver na cidade do Porto, ele como taxista e ela dedicada à costura. Estão ambos sepultados no cemitério de Ramalde.

A trama, digna dos melhores enredos literários ou cinematográficos, despertou o interesse e a criatividade de muitos. Ainda que caminhando por caminhos algo distintos, dando visões quase antagónicos do que uniria Maria Adelaide Coelho da Cunha e Manuel Claro, escritores e argumentistas mergulharam numa das mais rebuscadas histórias que alimentaram o país nos inícios do século XX.

Augustina Bessa Luís escreveu “Doidos e Amantes”, Manuela Gonzaga juntou recortes e testemunhos para o livro “Doida não e não!”, enquanto Monique Rutler realizou o filme “Solo de Violino” e, mais recentemente, Mário Barroso trouxe o episódio de novo à sétima arte com “Ordem Moral”.