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Histórias da Cidade: Um Porto de granito e sonho escrito na Cantareira

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Filipa Brito

A pouco mais de 200 metros da Cantareira, paralela ao Passeio Alegre, ergue-se ainda o número 62, aquela casa clara, espaço só seu. Lê quem passa que “Nesta casa nasceu em 12 de Março de 1867 o glorioso escritor Raul Brandão cuja obra é das mais belas da literatura de Portugal”. Hoje, seriam 155 anos do lirismo do autor de “Húmus”, que escreveu o Porto em cada linha.

Então Rua da Bela Vista [depois ganhou o seu nome], “lá está a velha casa abandonada, e as árvores que minha mãe por sua mão dispôs”, escreve em “Memórias” (1919). Lá “o mesmo barco arcaico sobe o rio, guiado à espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé, sobre a gaiola de pinheiro”.

“Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no Alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida. (...) O que sei de belo, de grande ou de útil aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois, não aprendi coisa que valha”, admitia.

Nos 155 anos de Raul Brandão, mostra ainda hoje a Foz do Douro “uma luz como não há outra e que estremece com o movimento e os reflexos da água, um ar como não há outro e que ainda hoje respiro como a própria vida” (“Os Pescadores”).

Estas memórias da Cantareira, uma “vila adormecida” que “estava a cem léguas do Porto e da vida" e onde as casas, "limpas como o convés de um navio, espreitavam para o mar, umas por cima das outras", e tantas que as palavras perpetuaram entre os maiores da literatura nacional, erguem-se hoje a granito e bronze, num trabalho de arquitetura de Rogério de Azevedo e escultura de Henrique Moreira.

Inaugurado pela Câmara do Porto, no Passeio Alegre, para celebrar o centenário de Raul Brandão, bebe inspiração em “Os Pescadores” (1923) e “Os Pobres” (1900). Em ambas as obras, sempre as memórias do Porto, “esta paisagem – mar, rio e céu – entranhou-se-me na alma, não como paisagem, mas como sentimento”, do “americano que se inaugurava e que levava a gente ao Porto numa hora, alumiado à noite por uma luzinha de petróleo e com reforço de mulas em Massarelos” (“Os Pescadores”), da pesca, das redes, da venda de peixe, dos ferreiros e dos carpinteiros de Miragaia e do Ouro.

Da Foz à Ribeira, Douro acima, “entre um rasgão de arvoredo avança para mim uma massa cinzenta e confusa com o recorte duma igreja, que parece desmedida, lá no alto, e desce até ao rio numa miscelânea de casas, de chaminés de fábricas, tudo enfumado e indeciso (…) E pouco e pouco a cidade aproxima-se com uma auréola de cinza e prata e o rio empoado de roxo” (“Portugal Pequenino”, 1930).

Raul Brandão vê o seu Porto como “uma cidade estranha e desmedida, sórdida e esplêndida, uma cidade que ao mesmo tempo mete medo, e que, se não é a mais bela, é a mais pitoresca que conheço no mundo” (“Portugal Pequenino”, 1930).

Estudar e amar (n)o Porto

Mas, do Porto de finais do século XIX e inícios do século XX, lêem-se também os estudos, no Colégio de S. Carlos, “um casarão enorme no alto da rua Fernandes Tomás dentro duma cerca de terra calcinada”, que “endurecia (…) porque nos dava imediatamente uma imagem da vida” (“Memórias”), e os primeiros amores: “Tinha os meus treze anos (…) Era ao tempo um rapazinho espigado, louro e inocente – o pernalta. Sobretudo inocente. Mas como os maiores falavam em amores (...) comecei a fazer vistas a uma padeirinha da minha idade, que todas as manhãs dava o pão nas casas de Fernandes Tomás” (“Vale de Josafat”).

É neste obra de 1933 que Raul Brandão descreve os serões com outros nomes da literatura portuguesa, no “escuro café Camanho, da Praça Nova” que foi “durante anos o refúgio dos literatos”. “Durante muitas noites e a altas horas aparecia o Eça [de Queirós] que o [Hamilton de] Araújo conhecia e, sentando-se sozinho, pedia uma galinha cozida que comia com uma fome de lobo. – 'Anda a escrever o romance...' – dizia-se baixinho à roda. E olhávamos para ele, com admiração e espanto”.

Lá fora, “chovia a cântaros. O Porto vivia debaixo de água. Um lampião espelhava a luz mortiça no largo, junto à sombra tétrica da Câmara, na cripta da Praça, como lhe chamava [Guerra] Junqueiro... Alguns da nossa mesa levantavam-se e iam acabar a noite às águas-furtadas do Igo de Pinho, onde tínhamos o nosso cenáculo”, na Rua do Almada.

Em “El-Rei Junot” (1912), o escritor põe em palavras mais uma homenagem à cidade Invicta: “O homem tem um enternecido amor à terra áspera, nevoenta e profética. A pedra pegajosa, a rua estreita e a água no fundo trespassa-a como lava. Entranha-se o salitre no granito, a névoa no homem orgulhoso e rude. Mas a névoa sobe do fundo do burgo e turva-o: torna-o confuso e enorme, concentrado; dá a alma à pedra, ao homem sonho”.

E assim (de)termina: “Lembrem-se: a cidade inquieta, com as ruas cheias de populaça grosseira, tem o rio na alma, tem o rio no fundo, que a atravessa e lhe dá o ar nevoento e concentrado. O Porto é granito e sonho”.