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Histórias da cidade: Sinédrio formou-se no Porto há 203 anos

  • Isabel Moreira da Silva

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Miguel Nogueira

Há 203 anos, Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho e João Ferreira Viana constituíam na cidade do Porto o Sinédrio, uma associação secreta que inspirou a Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820.

Impulsionados pela consternação que se seguiu à execução de Gomes Freire de Andrade, general que, em 1817, falhou uma tentativa de sublevação anti-britânica em Lisboa, quatro burgueses e juristas no Porto, descontentes com o rumo que o país tomava, decidiram formar, em janeiro de 1818, uma sociedade resguardada do olhar público, com o intuito de preparar em surdina o ideário liberal e pôr fim à monarquia absolutista. Denominou-se Sinédrio, palavra que etimologicamente deriva do grego e significa “conselho”, “assembleia”.

Longe da capital, cada vez mais sob o jugo do domínio inglês, a organização secreta beneficiou da conjuntura favorável do Porto. “O hábito das tertúlias esteve no início do movimento. Na Rua das Flores havia grandes livrarias onde as pessoas trocavam coisas que em Lisboa eram ilegais. Coisas que em Lisboa a censura conseguia apanhar, e aqui não conseguia", recordou Rui Moreira, aquando das celebrações do bicentenário da Revolução Liberal.

Nesses lugares, maldizia-se a fuga da família real para o Brasil, episódio que espoletou o controlo económico e político dos ingleses, em solo português desde as invasões francesas (se inicialmente a presença era bem-vinda, porque foi o apoio dos britânicos que garantiu a expulsão das tropas napoleónicas, a longo prazo tornaram-se evidentes as intenções de transformar Portugal em protetorado inglês). Além disso, havia o sentimento generalizado de que Portugal tinha trocado de posição com o Brasil, colónia em que identificavam laivos de centro do império.

Esta insatisfação ganhou mais lastro na cidade do Porto, onde chegava ilegalmente a imprensa de Inglaterra e Espanha. E escalou quando, no início de 1820, o país vizinho foi agitado por um golpe de Estado que repôs a Constituição de Cádis (aprovada em 1812). Momento que aqueceu as hostes do Sinédrio, que na véspera da Revolução de 24 de Agosto já contava com 13 membros.

O professor e historiador José Manuel Lopes Cordeiro, um dos comissários das comemorações dos 200 anos da Revolução de 1820, organizadas no ano passado pela Câmara do Porto com um vasto conjunto de personalidades e instituições da cidade, dá conta dessas circunstâncias e do papel determinante de um dos fundadores da organização secreta para a eclosão da revolução.

“Não é verdade que a Revolução Liberal pudesse ter acontecido tanto no Porto como noutro sítio qualquer, como chegou a dizer um historiador muito conhecido de Lisboa, que já faleceu”, começa por dizer.

“Em finais de julho de 1820, Fernandes Tomás vai a Lisboa para fazer contactos e é seguido pela polícia. Ia sendo preso se não se tivesse apercebido, por isso veio embora um dia antes. A repressão era terrível, basta ver o episódio do Gomes Freire de Andrade; liquidaram-no em ‘três tempos’. Um dos governadores do reino era seu primo e, mesmo assim, não houve contemplações. As pessoas em Lisboa tinham medo. Não havia a menor hipótese”, comentou ao Porto. o investigador e comissário da exposição “1820.Revolução Liberal no Porto", que esteve patente no Gabinete do Tempo do Museu da Cidade - Casa do Infante.

“Manuel Fernandes Tomás é uma figura que sobressai", continua. "Foi pena ter morrido dois anos depois, em 1822. Aliás, durante os trabalhos das cortes, nas atas, várias vezes me deparei com referências deste género: ‘o senhor Manuel Fernandes Tomás pede escusa por se estar a sentir mal’”, partilhou o também autor do livro-catálogo sobre 1820, obra que foi recentemente distinguida pelo Almanaque Republicano.

“A nível dos contactos com os militares, o Sinédrio preparou isto muito bem. Sabiam que ou conseguiam ter militares do seu lado ou então não havia revolução. E, para os arregimentar, usavam dois grandes argumentos: um era a presença dos oficiais ingleses, que estavam nos postos de comando, e a segunda eram os soldos em atraso. O governo da regência vivia em grandes dificuldades, porque D. João VI e a sua corte, além de estarem no Brasil, pediam para Portugal mandar dinheiro para lá. Não só dinheiro, como soldados!”, refere o professor universitário.

Tendo o propósito do Sinédrio sido cumprido com a Revolução Liberal do Porto, com o respaldo dos militares e do poder político da cidade (é no livro de atas da Câmara Municipal do Porto que é fundado o regime liberal do país), alguns dos seus membros transitaram depois para a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, encarregue de formar as Cortes Constituintes, responsáveis pela elaboração da primeira Constituição Portuguesa de 1822.

Mais de sete décadas depois da formação do Sinédrio, decorreria, também no Porto, a primeira tentativa da implantação do regime republicano em Portugal. A “Revolta de 31 de Janeiro” de 1891 – como ficou conhecida – aconteceu há precisamente 130 anos. Na sua origem, bebia da Revolução Liberal do Porto, e de uma vontade de levar "à letra" a transformação de súbditos em cidadãos, que 1820 já instigara.

Não fosse a situação excecional que atravessamos, a homenagem que todos os anos é feita pelo Município do Porto com a Associação 31 de Janeiro seria realizada diante do monumento aos Heróis do 31 de Janeiro de 1891, localizado no Cemitério do Prado do Repouso.