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Histórias da Cidade: Porto, casa de Sophia

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Filipa Brito

“Em frente, surgia a casa, enorme, desmedida, com altas janelas, largas portas e a ampla escadaria de granito, abrindo em leque. Na parte de trás, corria uma longa varanda debruçada sobre os roseirais do poente”. A casa dos avós, a Quinta do Campo Alegre, a casa das brincadeiras depois da escola, das florestas, dos “longos jantares”. A realidade e a ficção misturadas nas palavras sempre simples e poéticas da maior da poesia nacional. A 6 de novembro seriam 102 anos de Sophia.

O excerto é do conto “Saga”, incluído no livro de 1984, “Histórias da Terra e do Mar”, e é apenas um dos exemplos da literatura e poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen onde a escritora mergulhava a inspiração na casa onde passou a infância, a Casa Andresen, na Rua do Campo Alegre.

Lá dentro, continua a história para crianças, tudo “era desmedidamente grande desde os quartos de dormir onde as crianças andavam de bicicleta até ao enorme átrio para o qual davam todas as salas e no qual, como Hans dizia, se poderia armar o esqueleto da baleia que há anos repousava, empacotado em numerosos volumes, nas caves da Faculdade de Ciências por não haver lugar onde coubesse armado”.

Poderia, como se armou. Da imaginação de Sophia para o átrio, um enorme esqueleto de baleia dá agora as boas vindas à Galeria da Biodiversidade do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto.

Ainda que o grande legado de Sophia de Mello Breyner Andresen seja conhecido em forma de poesia, foram vários os livros infantis que escreveu, muitas vezes para ler aos filhos, e a inspiração na sua própria infância tem muitas raízes nesta casa avermelhada.

“A noite de Natal” traz-nos uma Sophia deslumbrada com as luzes, a família numerosa e o grande pinheiro que era recolhido na Quinta do Campo Alegre. Isabel, protagonista do conto “A Floresta”, leva-nos a descobrir “a sala do piano onde experimentava um por um o som misterioso das teclas brancas e pretas” e a cozinha onde “havia sempre barulho e agitação”.

A própria “floresta” nasce das brincadeiras de Sophia pelo imenso verde que hoje é o Jardim Botânico e que haveria de firmar a sua forte relação com a natureza. As “tílias altíssimas cujas folhas, de um lado verdes e do outro quase brancas, palpitavam na brisa”, descreve a escritora, “as flores envergonhadas” que são as camélias, assim como o Jardim dos Anões, um local onde existia um enorme carvalho – “eram precisos três homens para o abraçar” – cujas cavidades seriam “um bom sítio para morarem anões – pensou Isabel”.

Nesta quinta, por onde se entrava “pelo lado dos campos, por um portão de ferro que, depois de o passarmos, ao fechar-se batia pesadamente” (excerto de “Saga”) está ainda o reino encantado de “O Rapaz de Bronze”, “um lugar sombrio, solitário e verde” onde está, afinal, a estátua de uma rapariga, mas que, na imaginação de Sophia, vivia um rapaz que “de dia, não se podia mexer e tinha de estar muito quieto” e, durante a noite, “falava, mexia, caminhava, dançava, e era ele quem mandava nos jardins, no parque, no pinhal, nos pomares e no campo”.

Ainda hoje, transpor o tal portão de ferro que “ao fechar-se batia pesadamente”, é entrar no mundo encantado dos contos infantis de Sophia, nas palavras poéticas de uma das maiores figuras da cultura do país, nascida no Porto há 102 anos.