Sociedade

Histórias da cidade: os arquitetos mal-amados cujo valor só o tempo veio dar prova

  • Cláudia Brandão

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Filipa Brito

Não foram escolhidos pela reputação. Foram até mal vistos quando apresentaram as ideias. Mas quando hoje olhamos para dois dos mais importantes e emblemáticos edifícios da cidade não é às opiniões que ficamos agarrados. Os arquitetos que primeiro vislumbraram a imponência da Torre dos Clérigos e do edifício dos Paços do Concelho viram o orgulho do Porto sobrepor-se às dúvidas e o seu nome marcado pelo contributo inestimável para a imagem do presente da cidade.

Poucos saberiam quem era Nicolau Nasoni no início dos anos 30 do século XVIII. Terá chegado ao Porto alguns anos antes, depois de ter protagonizado um desentendimento com a Inquisição, em Malta, numa trama que envolvia falta de pagamentos de uma obra que fez no palácio de um inquisidor. A história foi contada por D. Américo Aguiar, na homenagem que a Irmandade dos Clérigos lhe dedicou esta semana.

Marcado, Nasoni procurava emprego longe. De férias na ilha, o então deão da Sé do Porto, D. Jerónimo Távora e Noronha, recebeu de um familiar, D. António Manuel de Vilhena, grão-mestre da Ordem de Malta, o pedido para arranjar um trabalho antes que o problemático Nasoni fosse morto.

E assim chegou o italiano à Invicta, onde encontrou trabalho na capela-mor da Sé. É dele o traço dos janelões que iluminam o edifício. E uma série de outras pequenas encomendas. Aparentemente, o que Nasoni melhor sabia fazer eram desenhos, pouco de arquitetura. Mas não era esse pormenor que travaria a confiança no seu nome para assinar aquela que viria a tornar-se uma das mais icónicas imagens do Porto.

Além de não ter o currículo mais rico, Nasoni viu-se confrontado com o desafio de corresponder ao pedido da Irmandade dos Clérigos numa “língua” de um terreno em declive, no Campo do Olival, também conhecido por “Campo das Malvas”. Era onde se enterravam ladrões e assassinos. Um terreno indesejado, que viria a dar lugar à expressão portuense “mandar para as malvas” (ou às urtigas).

Foram precisos cerca de 30 anos para que todo o projeto - a igreja, o edifício da Irmandade e, finalmente, a torre sinaleira - ficasse concluído e consta que Nicolau Nasoni o tenha feito sem receber um centavo. “Olhai o que ele fez”, disse D. Américo Aguiar, “e não se deu mal pelo facto de a nossa cidade ter pessoas competentes e boas para fazer as coisas, no tempo certo”.

Para o atual Bispo auxiliar de Lisboa, o facto de Nasoni, que “só era bom a fazer desenhos”, ter encontrado “profissionais capazes de transformar os desenhos nesta obra que aqui temos”, apagou toda a desconfiança na pouca experiência do italiano. Hoje, do cimo dos 75 metros de altura, ninguém pensa em apontar o dedo acusador a Nasoni.

“Sempre que se faz uma obra, toda a gente diz mal. Mas passado um tempo olhamos para as coisas e apreciamos”, afirmou D. Américo Aguiar, que teve um papel fundamental na requalificação da Igreja dos Clérigos e na dinamização cultural do monumento.

A transformação para não demolir os Paços do Concelho

A afirmação é válida, igualmente, quando olhamos o cimo da Avenida dos Aliados, para o imponente edifício dos Paços do Concelho. O nome do arquiteto responsável é menos sonante que o de Nicolau Nasoni e nem a escola de Paris valeu a António Correia da Silva mais defensores da sua obra. Talvez pelo contrário.

O autor da sua biografia, Domingos Tavares, acredita que o arquiteto portuense nunca foi devidamente valorizado. E são dele, além do edifício que alberga a Câmara Municipal, também o Mercado do Bolhão ou o Matadouro, as escolas primárias da Praça da Alegria e da Foz do Douro, e mesmo o quartel dos Bombeiros da Foz. E estas são as que se sabem, outras tantas poderão não ter levado assinatura.

Aos Paços do Concelho muitos defeitos se apontaram. Que era um “pastelão”, uma “aberração arquitetónica”. A ideia inicial até era do inglês Barry Parker, que Correia da Silva alterou e a construção arrancou em 1920. Só no final dos anos 30 é que concluiria, entre convulsões sociais e políticas, a estrutura de pedra. Houve vereadores da câmara que quiseram que o edifício viesse abaixo. O projeto foi motivo de escárnio de intelectuais vanguardistas. Aos primeiros sinais do modernismo, já ninguém queria um edifício que remontava a um estilo passado.

Não foi demolido, mas muito do projeto viu-se sacrificado. Chamado à reformulação do edifício, Carlos Ramos concluiria as alterações já na segunda metade década de 50: a torre ficou com menos um piso, foram retirados quatro nichos na fachada e substituída uma escadaria por uma rampa de acesso para automóveis.

“Apesar de tudo, a câmara é hoje um monumento; apresenta uma estética algo híbrida, mas que denota uma continuidade entre a ideia original e a evolução da cultura arquitetónica”, acredita Domingos Tavares. O arquiteto deixou-se apagar, mas muito dos Paços do Concelho é ainda o desenho que Correia da Silva traçou.