Sociedade

Histórias da Cidade: Memórias de relação e perdição no cárcere

  • Cláudia Brandão

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Filipa Brito

A casa onde, há duas décadas, mora o Centro Português de Fotografia (CPF) tem mais memórias do que qualquer rolo poderia revelar. Em mais de 200 anos de história, a antiga Cadeia da Relação assistiu ao enclausuramento de ilustres e anónimos, homens, mulheres e menores. Sentenças mais ou menos justas, à desgraça de uns e à salvação de outros por entre corredores que, ainda hoje, transmitem o frio de vidas no cárcere.

O clássico da literatura nacional, "Amor de Perdição", conta a história do amor proibido entre Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, mas as personagens principais desta trama poderiam ser o seu autor, Camilo Castelo Branco, e Ana Plácido, com quem - alegadamente - mantinha uma relação extraconjugal.

Foi precisamente por ter sido “indiciado por crime de adultério” que o escritor do Romantismo português foi preso na Cadeia da Relação, no Porto, em outubro de 1860. O estatuto de ilustre e abastado permitiu que a estadia acontecesse nos “quartos da Malta”, o piso reservado aos privilegiados. A sua cela – com o nome de S. João – ainda hoje pode ser visitada.

A sua apaixonada ficaria na ala reservada às mulheres e só passados 381 dias haveriam os dois de voltar à liberdade, considerados inocentes. No ano seguinte, Camilo Castelo Branco publicaria o romance que escreveu na cadeia e lhe daria o maior reconhecimento, o mesmo que hoje dá nome ao largo em frente ao edifício e onde o amor de Camilo e Ana foi eternizado numa estátua de bronze oferecida por Francisco Simões.

Mas a experiência deu mais frutos. Em “Memórias do Cárcere”, o escritor trouxe à luz da sociedade a realidade no interior da Cadeia da Relação. Deu palavras às miseráveis condições, contou as histórias deprimentes de quem ali cumpria pena, descreveu como poucos as enxovias frias, húmidas e sujas. Nas páginas do livro, Camilo Castelo Branco conta o episódio do dia em que o rei D. Pedro visitara a cadeia e quis, sem sucesso, acabar com a situação degradante que encontrou.

Só o 25 de abril de 1974 viria pôr fim à Cadeia da Relação, com os seus detidos a serem transferidos para o novo estabelecimento prisional do Porto, em Custóias. Pelo edifício nos Mártires da Pátria, desenhado pelo engenheiro e arquiteto Eugénio dos Santos – o mesmo que esteve reconstrução da Lisboa pombalina -, passaram outros nomes reconhecíveis: o estrondosamente falido banqueiro Roriz, Urbino de Freitas, acusado pelo Crime da Ruas das Flores, o salteador Zé dos Telhados, conhecido como o “Robin dos Bosques português”, o odiado major miguelista Pita Bezerra, que haveria de ser assassinado numa rua ali perto, e o jornalista político João Chagas, o mesmo que dá nome ao jardim em frente ao CPF.

Hoje classificado como Monumento Nacional, o edifício começou a ser construído na década de 60 do século XVIII como resposta ao desabamento do espaço anteriormente construído com dinheiro dos que, no século XVII, fugiam ao degredo para a África. Só terminaria 30 anos e 200 contos de réis mais tarde.

A nova Cadeia da Relação albergou, ainda, o Tribunal da Relação, e apresentava enxovias com nomes de santos: Santo António, Sant'Ana, para homens; Santa Teresa para mulheres; e Santa Rita para menores. Tinham apenas acesso através de alçapões. O Senhor de Matosinhos supervisionava a oficina e São Vítor vigiava as prisões castigo. Também era possível cumprir pena nos salões do Carmo e de São José mas, porque o piso era melhor, era preciso despender 1$500 réis para ali dormir.

Além destas valências, outras foram surgindo ao longo do tempo: um oratório para os condenados à morte, quartos para presos “incomunicáveis”, uma capela, um pátio, o posto antropométrico e a respetiva secção fotográfica, oficinas de alfaiataria e sapataria e um “parlatório” que era isso mesmo: um local para os presos conversarem com as visitas.

O tratamento na prisão tinha uma relação direta com o tipo de crime cometido, o estatuto social e a capacidade do detido para pagar. Durante os 200 anos, funcionou sempre sobrelotada.