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Histórias da cidade: hoje, como em 1899, a tenacidade do Porto posta à prova

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Rua da Fonte Taurina

Filipa Brito

Ao longo dos tempos, foram inúmeros os desafios que a cidade Invicta enfrentou e conseguiu superar. A situação atual encontra eco nos eventos históricos de que o Porto foi palco há mais de um século.

Neste primeiro fim de semana de proibição de circulação na via pública em determinados horários, a tenacidade do Porto, e do país, é colocada à prova. Os portuenses também já sabem que, ao contrário da tradição, não vão ter Árvore de Natal nem fogo de artifício na Passagem de Ano. Mas a cidade Invicta já demonstrou que é capaz de elevar-se à altura das circunstâncias e perseverar.

Em 1899, o Porto viveu uma situação que tem algumas semelhanças com aquela que agora assola o país e o mundo. Nesse final do século XIX foi detetado, na cidade, um surto epidemiológico de peste bubónica, cujo combate implicou duras medidas.

Tudo começou no verão desse ano, com uma nota entregue ao médico municipal do Porto e responsável pelo Laboratório Municipal de Bacteriologia, Ricardo Jorge. “A 4 de julho de 1899 recebia eu um bilhete dum negociante da Rua de S. João, chamando a minha atenção para uns óbitos que se tinham dado na Rua da Fonte Taurina”, escreve o introdutor em Portugal dos conceitos modernos de saúde pública, num texto incluído no anuário do Serviço Municipal de Saúde e Higiene da Cidade do Porto para 1899.

O autor decidiu dirigir-se à Ribeira para “fazer uma visita pessoal à Fonte Taurina, onde com as informações colhidas e os doentes ainda presentes me convenci logo estar em frente dum foco epidémico de moléstia singular e nova”. Naquela rua estreita, em casas exíguas e sem condições de salubridade onde se amontoavam os operários, Ricardo Jorge deu-se conta do que estava em causa.

Cidade mobilizada

A cidade mobilizou-se para travar a peste, como demonstram alguns materiais depositados no Arquivo Distrital do Porto: por exemplo, foi lançada uma campanha de eliminação de ratos, que consistia na concessão de 120 reis por 12 ratos mortos apresentados por qualquer pessoa ou serviço.

“Pela presidência da Câmara Municipal foram tomadas já, além das que temos noticiado, mais estas medidas: Mandar lançar em todas as bocas de lobo [sarjetas], para a exterminação dos ratos, bolos de estricnina. Proceder a lavagens diárias nas ilhas e lugares mais imundos da cidade. Reforçar os turnos do pessoal incumbido da limpeza da Foz e Lordelo do Ouro”, podia ler-se na edição de 22 de agosto de 1899 d’O Comércio do Porto.

Há imagens no Arquivo Municipal do Porto de algumas dessas ações. Desde o trabalho do Serviço Municipal de Desinfeção, uma corporação especial de bombeiros que fazia limpeza a casas insalubres, à desinfestação de uma ilha do Porto, incluindo uma imagem de bombeiros desinfestando um caixão.

Por essa altura, pendia sobre a cidade o espectro de um cordão sanitário que isolava o Porto do resto do país, medida proposta ao Governo pela junta de saúde pública.

Lima Júnior, presidente do Município, entregou um documento ao governador civil, para ser enviado ao Governo, citado n’O Comércio do Porto, de 26 de agosto de 1899: “A Câmara Municipal do Porto não pretende que se poupe à cidade nenhum sacrifício, cuja utilidade para o bem comum seja reconhecida; não se furta a nenhum incómodo e tudo aceita resignadamente; mas o que ela não pode aceitar de boamente é que aos horrores da peste se venham juntar os da fome, provocados por medidas mal pensadas”.

As restrições à circulação de pessoas e mercadorias provocaram descontentamento, aumento de preços e mesmo uma fuga da cidade: “Não pelos sustos da epidemia, mas por se temer uma crise alimentícia e uma situação verdadeiramente anormal na cidade, mercê de providências não justificáveis, por serem rigorosas em demasia, houve ontem um êxodo de grande parte da população portuense”, lia-se numa notícia nessa mesma edição do jornal.

Milhares de portuenses viveram momentos dramáticos na fase mais aguda do surto, que no entanto foi contido graças às medidas rigorosas aplicadas pelas autoridades de saúde. A cidade não se rende.