Sociedade

Histórias da cidade: Gomes de Sá, glória da culinária portuguesa

  • Paulo Alexandre Neves

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Filipa Brito

Este é um artigo para saborear, mesmo que as letras não tenham cheiros nem sabores. Sim, saborear, lenta e calmamente, sobretudo o “fiel amigo” no prato. E se hoje falamos dele, muito se deve a um negociante do Porto que deu fama e o seu próprio nome a uma receita, tantas vezes adulterada, mas que ganhou protagonismo dentro e fora de portas: o “bacalhau à Gomes de Sá”.

José Luís Gomes de Sá Júnior nasceu a 7 de fevereiro de 1851, numa casa situada na Rua do Muro dos Bacalhoeiros, no número 114. Ali existe uma placa, mandada colocar, em 1988, pelo então cônsul do Brasil no Porto, João Frank da Costa, que decidiu homenagear o comerciante de bacalhau, "glória da culinária portuguesa".

Regista a história que Gomes de Sá gostava de cozinhar. Consta que fazia muito bem bolinhos de bacalhau. Até um dia se fartar, pegar nos mesmos ingredientes – bacalhau, batatas, ovos, cebola, sala e um bom azeite – e criar um prato novo. Infortúnios da vida levaram-no a ter de vender (ou escrever em carta) a receita ao seu colega e melhor amigo João, cozinheiro do Restaurante Lisbonense (famoso pela música de orquestra e com entrada principal pela Rua do Bonjardim). Deixou também alguns avisos: o primeiro é de que o prato deve ser servido “bem quente, muito quente”; o segundo é uma nota com uma frase que ficou célebre: “João, se alterares qualquer coisa já não fica capaz”.

Fátima Moura escreve no seu blogue “Conversas à Mesa”: “O icónico prato terá sido provavelmente criado na década de 1910, numa das habituais almoçaradas que o comerciante fazia com os amigos em restaurantes dos arredores do Porto. No livro ‘Bem Comer & Curiosidades’, José Quitério [n.r.: antigo crítico gastronómico do semanário Expresso] afirma ter recebido, em 2001, uma carta de um afilhado de Gomes de Sá, onde este lhe faz parte de que o famoso prato terá sido estreado num restaurante do local da Ponte da Pedra (sobre o rio Leça, na estrada do Porto para Braga, à entrada de São Mamede de Infesta)”.

José Luís Gomes de Sá Júnior viria a falecer em 1926. Ainda que muitas vezes adulterado, a sua criação ganhou fama por cá e além-fronteiras. Por exemplo, no Brasil onde é muito apreciado, graças à imigração portuguesa pós-colonial, sobretudo depois dos meados do século XIX. Em vários mercados do Brasil, o bacalhau é vendido como “Bacalhau do Porto”. Por cá, o prato foi um dos candidatos finalistas às Sete Maravilhas da Gastronomia portuguesa, o que revela a sua grande importância para a culinária portuguesa, bem como o seu valor gastronómico em Portugal.

Receita original

O “Bacalhau à Gomes de Sá” é dos poucos pratos que tem a receita original fornecida pelo seu criador. Mais uma vez, ao seu amigo João, Gomes de Sá explica, detalhadamente, todos os passos da receita. O mais importante é deixar as pequenas lascas de bacalhau num prato fundo, cobertas por leite quente, durante cerca de uma hora e meia a duas horas.

Aqui fica a receita original e a sua preparação:

Ingredientes: postas de Bacalhau demolhado, batata, dentes de alho, cebolas, ovos cozidos, azeite q.b., salsa q.b., azeitonas pretas a gosto, leite magro q.b.

Preparação, segundo a receita original de José Luís Gomes de Sá Júnior: “Pega-se no bacalhau demolhado e deita-se numa caçarola. Depois, cobre-se tudo com água a ferver, e, depois, tapa-se com uma baeta grossa ou um pedaço de cobertor e deixa-se, então, assim, sem ferver, durante 20 minutos. A seguir, ao bacalhau que está na caçarola e que devem ser 2 quilos pesados em cru, tiram-se-lhe todas as espinhas e faz-se em lascas e põe-se num prato fundo, cobrindo-se com leite quente, deixando-o, em infusão, durante uma hora e meia a duas horas. Depois, em uma travessa de ir ao forno, deita-se três decilitros de azeite fino do mais fino (isto é essencial), quatro dentes de alho e oito cebolas a alourar. Ter já dois quilos de batatas (cortadas, à parte, com casca) às quais se lhes tira a pele e se cortam às rodelas da grossura de um centímetro e bota-se as batatas mais as lascas do bacalhau, que se retiram do leite. Põe-se, então, na mesma travessa, no forno, deixando-se ferver tudo, por dez a quinze minutos. Serve-se, na mesma travessa, com azeitonas grandes pretas, muito boas, e mais um ramo de salsa muito picada e rodelas de ovo cozido. Deve-se servir bem quente, muito quente”.