Cultura

Histórias da cidade: Eugénio de Andrade, o "poeta da luz"

  • Paulo Alexandre Neves

  • Notícia

    Notícia

DR_dia_mundial_poesia_eugenio_de_andrade_.jpg

DR

Este é um artigo cheio de poesia porque é de um poeta contemporâneo, um dos maiores de sempre da literatura portuguesa, que falamos: Eugénio de Andrade. Para o crítico Gastão Cruz, um dos "Quinze poetas Portugueses do Século XX".

Durante um ano muito se falou dele e da sua obra, por ocasião do centenário do seu nascimento. No Fundão, onde José Fontinhas (o seu verdadeiro nome) nasceu, a 19 de janeiro de 1923 (mais especificamente em Póvoa de Atalaia, pequena aldeia da Beira Baixa), e no Porto, onde morreu, a 13 de junho de 2005, aos 82 anos, mas também um pouco por todo o país.

Desde "As Mãos e os Frutos", em 1948, publicou mais de 20 livros de poesia, obras em prosa, antologia, livro infantil e traduziu, para o português, Frederico Garcia Lorca, José Luís Borges, René Char. Amante da "luz" e do "rigor obstinado”, como definia em entrevista à revista "Porto de Encontro" (CMP, dezembro de 2000), o poeta já então declarava que escrever "é um trabalho no arame que oferece cada vez mais dificuldades. Um dia, certamente, vou estatelar-me e acaba-se o artista. Mas, até lá, vamos tendo esperança…".

As Palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

(…)

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
(in As palavras interditas, Lisboa: Centro Bibliográfico,1951)

O amigo Dario Gonçalves

E o Porto? A sua relação com a cidade nunca foi pacífica. "Há olhos tão distraídos! Relativamente ao Porto, os meus eram quase cegos. Talvez eu tenha olhado sempre esta cidade com o pensamento noutro lugar” (in Porto, Os Sulcos do Olhar, Edições O Jornal, 1988) escreveu, em parceria com o fotógrafo Dario Gonçalves.

Nevoeiro

Viera do rio pela mão de uma criança
a cidade é agora de porcelana branca
(in Porto, Os Sulcos do Olhar, Edições O Jornal, 1988)

No ano de centenário do seu nascimento foram muitas as iniciativas concretizadas pela Câmara Municipal do Porto para assinalar a data: apoio à publicação do livro “Eugénio de Andrade, Fotobiografia”, de autoria António Oliveira e Dario Gonçalves, formalização do contrato de depósito do acervo do poeta, na Casa dos Livros, entre a Câmara do Porto e a Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), a exposição "Eugénio de Andrade, A Arte dos Versos", organizada pelo Museu da Cidade e as Bibliotecas Municipais, e a assinatura do contrato interadministrativo de cooperação com a Câmara Municipal do Fundão.

Em dia de aniversário do poeta, na passada sexta-feira, foi lançada pelo Museu da Cidade e Bibliotecas Municipais, a primeira versão da Biblioteca Digital Eugénio de Andrade. Para já, são mais de 400 os poemas, datiloescritos, manuscritos, fotografias, postais, livros e objetos da coleção pessoal do poeta, disponíveis em site próprio. E, este ano, o autor vai ser a figura maior da Feira do Livro do Porto.

Último poema

Filho de camponeses, Eugénio de Andrade tornou-se funcionário público, exercendo durante 35 anos a função de inspetor administrativo do Ministério da Saúde. Em 1950 seria transferido para o Porto, onde viveu e escreveu até ao fim dos seus dias.

As Maçãs

Também ele vai morrer, o verão.
Do verde ao vermelho
As maçãs ardem sobre a mesa.
Ardem de uma luz sua, mais madura.
E servem-me de espelho
(último poema editado por Eugénio de Andrade, mas não incluído em obra alguma. In Eugénio de Andrade, Fotobiografia, 2023)

A sua extensa produção literária granjeou-lhe vários prémios e distinções, entre os quais o Prémio Camões, em 2001, da Associação Internacional de Críticos Literários (1986), o Prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus (1988) e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989).

O poeta encontra-se sepultado no Cemitério do Prado do Repouso, no Porto, tendo a sua campa sido desenhada pelo arquiteto e seu amigo Álvaro Siza, incluindo a inscrição dos versos do seu livro "As Mãos e os Frutos".

Terra: se um dia lhe tocares
o corpo adormecido,
põe folhas verdes onde pões silêncio
sê leve para quem o foi contigo.