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Histórias da Cidade: Duque D’ouro é o trunfo da sorte ribeirinha

  • Cláudia Brandão

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Filipa Brito

O pai dizia que ele “havia de ser doutor”. Mas “Doutor Monteiro” não foi o nome que escolheu para si. A forma como Deocleciano Monteiro quis cuidar das pessoas foi outra. Quis que os seus olhos não tivessem de se afastar daquele Douro que era sua vida. Que, “sempre que houvesse um infeliz no fundo do rio, à espera de sepultura cristã”, estivesse presente para o ir lá buscar sem medo. E se “o rio é o meu pão, a minha sina, o destino que eu quis”, o Duque da Ribeira foi o trunfo que coube à sorte ribeirinha.

A própria mãe lhe terá dado tal alcunha tão aristocrática por questões de simplificação de um nome de difícil pronúncia. Mas de aristocrata, pouco teve a vida do Duque. O que ele queria era brincar com os barcos e ter o rio aos pés. Até essa alcunha veio com sabor a destino: “O meu nome é bonito - Duque da Ribeira - é do rio. E gosto dele assim”, dizia num documentário da RTP.

Na sua memória de sete anos, ficou sempre marcado o ano de 1909 e a cheia que galgou a Ribeira obrigando-o a abandonar a casa, na zona do Barredo, por vários dias. Depois dessas, houve muitas, “tantas que lhes perdi a conta”. “Haverá sempre cheias, até quando Deus quiser”, aceitava o Duque.

Começou a trabalhar como tipógrafo com o padrinho aos 11 anos, os mesmos que tinha quando, pela primeira vez, se fez ao rio para salvar uma vida de se perder. A partir daí, as contas deixaram de se fazer, mas foram sempre de somar.

Aos 14 anos, Deocleciano já tinha os documentos que o levariam, de forma mais oficial, aos barcos. Foi barqueiro, estivador, “fiz de tudo no rio”. O mais importante: resgatar. Vidas e corpos já sem ela. “Quando sei de um desastre num rio, sinto qualquer coisa a puxar-me para lá. Pego nas ferramentas e vou. Vou porque tenho de cumprir o meu dever”, acreditava o Duque.

E dali não saía enquanto o corpo não fosse recolhido e entregue à família. “Já tenho tirado infelizes do rio em cinco minutos, e ficado horas, noites inteiras a velá-los”. Como ele ninguém sabia as manhas do Douro, o quão perigoso pode ser o silêncio do rio. Se lhe dissessem onde o corpo tinha caído, determinava sem hesitação a zona onde o ir buscar. Dominava este “gratear” muito melhor que as autoridades. “O rio é malandro, se é. Mas eu gosto do rio, que nele é que eu me criei”.

A fama começou com o resgate dos corpos daqueles que se atiravam da Ponte Luís I. Os jornais não se distraíam dos seus atos de herói sem capa. “Cento e vinte cadáveres arrancados ao Douro”, “Uma vida dedicada às vítimas do Rio Douro”, “Salvador de vidas e pescador de cadáveres” enchiam as manchetes da altura.

Vieram as condecorações, as homenagens e os ilustres conhecer o mais ilustre e humilde da Ribeira. Ramalho Eanes, Mário Soares, o presidente moçambicano Samora Machel e até a Rainha Isabel II de Inglaterra assinam o pequeno livro de dedicatórias que lhe era tão precioso.

As cinzas de um herói ficam onde pertencem

Além dos que salvou, o Duque da Ribeira ensinou outros tantos a nadar. Crianças da zona, para que soubessem viver com o rio à porta de casa. Atava-lhes cordas ou dava-lhes boias de cortiça e mandava-as à água, no rio ou na piscina, sem nunca lhes tirar os olhos de cima. Fazia-o de forma gratuita.

Ao seu barco, o Duque da Ribeira haveria de dar o nome “Capitão J.W. Cowie”, um amante do Rio Douro e cujas cinzas pediu que fossem lançadas ali mesmo. O próprio Duque as terá transportado para serem lançadas junto à entrada da Barra, no lugar da Meia Laranja. Um dia, esse seria o destino da sua embarcação: queimado e deixado onde pertence. “Barcos como o meu têm que morrer no rio”, afirmava. Hoje, existe um barco salva-vidas do Instituto de Socorro a Náufragos que ostenta o nome “Duque da Ribeira”.

Depois da sua morte, em 1996, quem por ali procura manter o legado de Deocleciano Monteiro é Gastão. E este, que diz não ser Duque porque “como o Duque não há”, responde por “lobo do mar” e tinha em Deocleciano um professor. “Era impressionante”, recorda, "quando lhe diziam que havia um corpo no rio ele não descansava, procurava dia e noite até o encontrar. E, quando isso acontecia, pousava-o na margem e dava-lhe um beijo na testa”.

E, se as famílias dos mortos eram pobres, ainda fazia peditórios para ajudar no funeral. “Não faço isto para que as pessoas digam que o Duque é bom homem”, sublinhava. “Faço porque é o meu dever e tenho de o cumprir. Se não cumprisse, ficava com remorsos para toda a vida”, dizia o homem que acreditava, “porque preciso de acreditar, que há outra vida para lá desta. Uma vida sem maldade, sem ódio, sem sofrimento”.

No monumento que lhe foi erguido, da autoria do mestre José Rodrigues, fica eternizada a homenagem da cidade a este “Símbolo e sentido, testemunha e protagonista da vida da Ribeira”. Dali, o Duque da Ribeira mantém os olhos voltados para de onde nunca saíram. “Às vezes até me parece que sou um bocado do rio”. Será sempre o eterno guarda-rios.