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Histórias da cidade: chá e bolachas para dois corajosos no topo da Torre dos Clérigos

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Já passou mais de um século desde o dia em que 150 mil pessoas se juntaram ao redor da Torre dos Clérigos para assistir a um acontecimento tão empolgante quanto inesperado: dois homens treparam o edifício pelo exterior, sem qualquer auxílio, para tomarem “Um chá nas nuvens”.

Como todas as boas histórias, esta também poderia começar por “Era uma vez...” Recuamos até 1917 para recordar a façanha de José e Miguel Puertollano, que viajaram para o Porto com o objetivo definido de subir ao topo da Torre dos Clérigos. Até aqui tudo bem – visitar o monumento fará sempre parte do itinerário de qualquer turista na Invicta. Só que pai e filho fizeram-no de forma peculiar: subiram pelo exterior, sem recurso a cordas ou algo semelhante. Chegados ao topo, tomaram um chá, que acompanharam com bolachas.

José e Miguel Puertollano não eram meros turistas, mas sim acrobatas espanhóis contratados para integrarem uma ação publicitária que ficaria registada em filme. “Um chá nas nuvens” (integrado no arquivo da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema), de Raul de Caldevilla, ficou para a história como o primeiro filme publicitário realizado em Portugal. As estrelas da película – para além dos audazes Puertollanos, claro – eram as bolachas Invicta (Petit Beurre).

Patrocinadora do evento e do filme, a marca de bolachas empreendeu esta sofisticada operação publicitária para promover o seu produto, contando com a intuição de Raul de Caldevilla, um dos primeiros em Portugal a encarar a publicidade de modo estruturado e profissional.

Cumprem-se em breve 104 anos da façanha de José e Miguel Puertollano, que terá sido realizada no dia 28 de outubro de 1917. Miguel, o filho, é quem sobe os mais de 75 metros da Torre dos Clérigos desde a base, como se vê no filme. O pai junta-se-lhe perto do topo, e trepam até à cruz de ferro que coroa o monumento, onde fazem algumas acrobacias e acabam a tomar chá com bolachas. Também lançam milhares de papelinhos, com a forma e a imagem de uma bolacha, a convidar a multidão para acompanhá-los.

Foi um sucesso: segundo os jornais da época, cerca de 150 mil pessoas terão assistido à proeza dos acrobatas espanhóis. A multidão ficou registada numa imagem do estúdio fotográfico Foto Guedes que pode ser consultada no Arquivo Municipal do Porto.

“Tal foi a sugestão provocada que as próprias empresas ferroviárias se viram obrigadas a estabelecer bilhetes a preços reduzidos, facto que lhes proporcionou apreciados lucros. Os elétricos andaram abarrotados de povo, sendo escassíssimo o material para a afluência espantosa. Os hotéis, restaurantes, cafés, teatros, cinematógrafos, proprietários de trens e automóveis, todos fizeram um negócio fabuloso”, podia ler-se na Ilustração Portuguesa de 26 de novembro de 1917. A notícia da escalada acrescentava ainda: “Os jornais calcularam a multidão em 150.000 pessoas. E, para que se veja que não houve exagero, e se calculem bem as vantagens que de facto resultaram, basta apontar esta nota simples: no domingo à tarde o pão havia-se esgotado por completo em todos os estabelecimentos de venda.”

Os Puertollanos viriam, ainda em 1917, a repetir o feito, desta vez em Lisboa, trepando à Basílica da Estrela – outra façanha imortalizada em vídeo pela Caldevilla Film, com “Desafiando a morte”. A produtora de Raul de Caldevilla teria um papel de destaque na atividade cinematográfica do Porto no início do século XX, a par da Invicta Film, a primeira a realizar o Porto como Cidade do Cinema.