Cultura

Histórias da cidade: as cartas de D. João I ao Porto

  • Isabel Moreira da Silva

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D. João I não deixou apenas o seu nome numa praça do centro do Porto. O reinado do mestre de Avis foi rico na sua ligação à cidade, e há um manancial de cartas régias, com cerca de 600 anos, que o comprovam.

Cartas que tomavam a forma de pergaminhos, o equivalente mais próximo aos editais que ainda hoje o Município do Porto, bem como outras instituições e entidades públicas afixam à entrada das suas instalações.

Mas antes de nos perdermos nas mais curiosas ordens e decisões que o monarca tomou em relação ao burgo, vejamos por que cantos e recantos o seu nome por cá vive em palavra dita e até figurada.

À cabeça, a incontornável Praça de D. João I. Foi em sua homenagem que a Câmara Municipal do Porto ordenou a abertura da praça nos anos 40 do século passado, defronte ao Teatro Rivoli, inaugurado no início de 1932. No Arquivo Municipal do Porto há registo das demolições que ali tiveram de ocorrer, ainda antes de ser construído o Palácio Atlântico, que o lápis de António Cruz Caldas viria a esboçar no papel, nos anos 60. Por essa altura, também, a iluminação de azeite foi substituída pela de gás, como documenta outra fotografia da época.

Na viragem do milénio, a Praça de D. João I atravessou uma requalificação e reconfiguração profundas, no âmbito da Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura. A fonte luminosa foi retirada e, mais tarde, transferida para o Jardim do Marquês.

Será preciso descer apenas algumas centenas de metros, para continuar a testemunhar a presença de D. João I na cidade. Cartão vermelho levantado para quem ainda não se espantou com o painel de azulejos da Estação de São Bento, da autoria de Jorge Colaço. Entre muitas cenas históricas, grava a entrada de D. João I no Porto para celebrar o seu casamento com D. Filipa de Lencastre.

Vítor Pinto, historiador, explica porque foi esta a terra escolhida pelo “de Boa Memória” para o seu enlace com a inglesa Filipa de Lencastre, a 2 de fevereiro de 1387.

“O Porto foi uma escolha pensada. Nessa altura, embora fosse uma cidade pequenina, era o centro de algumas decisões políticas. Os conselheiros de D. João gravitavam em torno da cidade do Porto, e o que era decidido podia partir daqui. Além disso, era muito emblemática por tempos passados — pela famosa reunião que houve para a conquista de Lisboa e não só. D. João I tinha uma certa admiração e uma certa estima pelo Porto porque foram os portuenses que, em 1384, ajudaram os lisboetas que estavam a morrer à fome durante o cerco de Castela. Mas também por razões geoestratégicas, digamos assim — a cidade do Porto ficava mais perto de onde estava sediada a corte de Lencastre, que estava na Galiza, e por ser uma cidade portuária, o caminho podia ser feito de barco ou a cavalo. E depois pela Sé do Porto. O Porto era uma cidade do bispo, não pertencia ao rei”, afirmou o académico em entrevista ao Observador, aquando da celebração dos 630 anos da efeméride.

Cartas régias, de mercê e de sentença

O décimo rei de Portugal foi um dos principais impulsionadores da modernização medieval do Porto. Após a crise dinástica de 1383-1385, exacerbada pela morte de D. Fernando, seu meio-irmão, D. João I demonstrou um especial apreço pela cidade, dada a colaboração que teve para a vitória da guerra contra Castela, tendo também sido no Porto que nasceu o seu quinto filho, o Infante D. Henrique, que abriu Portugal ao Mundo.

Entre as obras mais relevantes erguidas por sua ordem destaca-se a construção da primeira rua estruturada, no final do século XIV: a Rua Nova ou Formosa (atual Rua do Infante D. Henrique). Mais de duas décadas depois, corria o ano de 1424, numa das cartas régias que sobreviveu, D. João I determina que o concelho do Porto “lance uma finta” para concluir as obras da nova artéria. Já por essa altura, a Rua Nova era o epicentro de uma atividade comercial crescente.

Estava no auge do seu longo reinado (1385-1433) e tinha logrado acrescentar mais territórios à urbe, somando património régio subtraído à jurisdição episcopal.

Não sem também ter tido um papel fundamental no desenvolvimento do comércio na zona ribeirinha. Na carta de mercê de D. João I sobre a venda de pescado, o monarca determinou que todo o peixe que chegasse à cidade por terra ou mar fosse levado, de imediato, para a Praça da Ribeira, onde deveria ser vendido. Numa outra carta, datada de 1410, D. João I isenta os mercadores do Porto do pagamento da dízima sobre penas para vestuário. E, em 1430, ordena ao contador Afonso Anes que não constranja os mercadores dos panos de cor pelo varejo, compreendendo as dificuldades que daí poderiam advir para os comerciantes.

Entre as cartas do primeiro rei da dinastia de Avis desencantam-se, por outro lado, decisões peculiares. Uma delas, a carta de mercê sobre o casamento de viúvas, estipulando “que as viúvas não sejam obrigadas a casarem com os escudeiros e criados do rei contra sua vontade”. Ou uma outra que ordena aos moradores da cidade, a pedido do próprio concelho do Porto, “a participação na reparação da muralha”.

Estas missivas são também um poderosíssimo repositório que ajuda a interpretar a história medieval e o sistema feudal dominante. Um dos manuscritos descreve, por exemplo, sobre a forma como os pobres (assim se julga ler) e os fidalgos poderiam recorrer aos juízes e corregedores. Numa outra carta de mercê, o rei autoriza o concelho do Porto a lançar impostos para custear as despesas com as deslocações dos procuradores às cortes.

Apesar da sua eterna afeição ao Porto, D. João I revelou sempre pulso firme, não se constrangendo em sentenciar a cidade numa contenda que opunha o Porto e o prior e o convento de Ancede. O motivo? Sete tonéis de vinho indevidamente tomados pela Câmara.