Cultura

Histórias da cidade: Aurélia de Sousa, a mulher artista na vanguarda da sua época

  • Isabel Moreira da Silva

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Quem era a pintora e fotógrafa portuense, nascida no Chile, que em criança não suportava as aulas de piano e quando adulta se trajou de Santo António para um autorretrato? Aurélia de Sousa, a mulher artista na vanguarda da sua época, deixou uma vida e obra nada convencionais.

Na véspera da celebração do Dia da Mulher debruçamo-nos sobre o percurso de uma das mulheres que mais marcou a vida artística da cidade do Porto na passagem do século XIX para o século XX.

Aurélia de Sousa nasceu em Valparaíso, no Chile, a 13 de junho de 1866, país para onde a família emigrara, contrariando a rota da maioria dos portugueses naquela época, que partiam sobretudo para o Brasil.

A fortuna feita pelo pai na construção dos caminhos de ferro precipitou o regresso da família ao Porto em 1869, tinha Aurélia apenas três anos de idade. A viagem, porém, foi o cabo das tormentas. Na encruzilhada entre dois oceanos - no Estreito de Magalhães - “o navio naufraga e os Sousa refugiam-se numa ilha em frente à Terra do Fogo até serem recolhidos por uma embarcação francesa”. Não fosse esta peripécia suficiente, a mãe, que já partira grávida, tem em pleno mar um novo bebé, narra a jornalista Ana Soromenho no livro-catálogo “Aurélia de Sousa – Mulher Artista (1866-1922)”, publicado em 2016 pelas câmaras municipais do Porto e de Matosinhos, sob coordenação de Filipa Lowndes Vicente, a propósito do 150.º aniversário do nascimento da artista.

Excluindo este episódio, a quarta dos sete filhos do casal António Martins de Sousa e Olinda Perez teve uma infância tranquila na Quinta da China, propriedade debruçada sobre o rio Douro, que o pai de Aurélia de Sousa adquiriu às portas da cidade - “cidade oriental” referida por Júlio Dinis, onde a maior parte dos brasileiros “torna-viagem” se instalaram.

Educada sob os preceitos de uma família tradicional burguesa, Aurélia mostrava grande apetência para as artes – mas não para todas. “‘Menina!... porque parou?... porque não toca?’. ‘Estou a ver os feitios que as minhas mãos fazem no piano’. Para mestre e discípula, as lições eram um tormento", conta Manuel Figueiredo, na biografia sobre a artista.

Coisa diferente era a sua destreza para o lápis e para o pincel. Segundo consta, terá sido o professor de pintura e desenho, Caetano Moreira da Costa Lima, a anunciar que “nada mais tinha para lhe ensinar”.

Apenas a morte do pai, “em circunstâncias nunca esclarecidas, como tantos outros segredos bem guardados na família e que se perpetuaram como mistérios”, viria a abalar os alicerces familiares, tinha Aurélia apenas oito anos.

Mas não por muito tempo. A mãe voltou a casar com um comerciante, Lopes Pereira, de quem teria mais um filho. Ana Soromenho adianta que o enlace teve, sobretudo, um objetivo prático: “restabelecer a ordem e as finanças na casa”. “Nas várias descrições recolhidas sobre os anos de Aurélia e Sofia de Sousa, não há a presença de homens a ditar as regras. Haverá figuras masculinas, tutelares e amigas, a quem com certeza se pedem conselhos, como é da praxe na sociedade de então, mas é a matriarca que tomará o pulso da educação das seis filhas”, constata.

A mulher artista

Num clã maioritariamente feminino, Aurélia de Sousa teve, portanto, o espaço suficiente para crescer dona do seu nariz. Aos 27 anos, decide matricular-se na Academia Portuense de Belas-Artes, ainda que a contragosto da progenitora.

“E Aurélia vai. Arrastando Sofia com ela e enfrentando a oposição da mãe sem vacilar, mostrando ser sangue da mesma têmpera do homem que atravessara oceanos à procura de fortuna por um amor verdadeiro, e também da mulher que o desposara no lugar da irmã, engolindo agruras e sem nunca abrir mão do seu território e da vontade de dar às filhas um destino condizente com a sua posição”. (Para que fique claro: o casamento entre os pais de Aurélia deu-se numa circunstância particular. António era um modesto rapaz de Castelo de Paiva que se apaixonou por Emília Perez, menina burguesa de origem madrilena. Para se casarem, a condição era que António enriquecesse, e por isso partiu para o Brasil. No regresso, a fatídica notícia de que a sua noiva tinha morrido; em alternativa, é a sua irmã mais nova, Olinda Perez, então com 15 anos, que ele desposa).

O curso na Academia de Belas-Artes, contudo, não satisfez Aurélia de Sousa na plenitude, tanto que não o chega a concluir quando parte para Paris, em 1899. Foi o cunhado, Vasco Ortigão Sampaio, marido de Maria Estela (a caçula nascida no mar), que patrocinou os seus estudos na Academia Julian. Ali, a entrada de mulheres só fora admitida dois anos antes.

“Um gesto de generosidade excecional” e “feito raro para um ser de condição feminina na estrita sociedade portuguesa do início do século XX”, reflete Ana Soromenho.

Dos relatos de Paris, chegam cartas à mãe de que os franceses são “uns fúteis, uns malucos”, ou de que a porteira do ateliê "metia o nariz em tudo", tenho-lhe “uma raiva que já não a posso ver”. Antes de regressar ao Porto, ainda viajou pela Europa com a irmã Sofia, também artista plástica, visitou os Países Baixos e passou férias no norte de França.

De volta à Quinta da China, é em redor deste eixo que tudo gravita. Seria a principal morada da pintora até ao fim da sua vida, em 1922, aos 55 anos.

Aurélia de Sousa não casou nem teve filhos, ao contrário do destino profetizado para as mulheres do seu tempo. Nunca mais regressou a Valparaíso, mas fez sempre questão de não abdicar da nacionalidade chilena, “perdendo horas do seu tempo em burocracias no consulado”.

Quem a estudou a fundo, descreve que a sua vida se desenrolou na “esfera de convívios amigáveis, no espaço circunscrito da família, que por vezes se alarga por via do cunhado e da irmã Estela, que cultivam a proximidade aos círculos mais intelectuais da cidade”. Os passeios de bicicleta nos arredores do Porto, as idas ao Cinema Batalha – consta que adorava filmes – e as exposições no Palácio de Cristal eram as atividades prediletas que ocupavam o seu tempo livre.

Por esta altura, já o diploma de Paris lhe abrira portas. Expôs inúmeras vezes no Porto, mas também em Lisboa; realizou viagens frequentes pela Europa e participou ainda em várias exposições públicas, enumera Filipa Lowndes Vicente. “No entanto, nunca obteve o reconhecimento e prestígio de muitos dos seus contemporâneos”, observa a investigadora.

Uma das suas obras mais reconhecidas é o óleo sobre tela “Santo António”. Raquel Henriques Silva, doutora em História de Arte, analisa-o. “O que me conquistou não foi a resolução plástica, mas a ousadia de Santo António, vestido com o hábito franciscano, ser manifestamente um autorretrato. Aurélia deu ao santo, sem registo icónico preciso, o seu rosto, as suas mãos e a fragilidade elegante do seu corpo”, comenta a historiadora de arte, acrescentando que a escolha por este santo padroeiro estaria relacionada com o dia do nascimento da artista.

Além da pintura, dos desenhos e ilustrações, a fotografia era a sua outra paixão, e Aurélia usou-a de formas diferentes. Por um lado, para fazer os álbuns de família – invenção oitocentista muito em voga. Por outro, também a experimentou enquanto prática artística. E, por fim, recorreu à fotografia no próprio processo da pintura.

Espólio na Casa Marta Ortigão Sampaio

A Câmara do Porto possui a mais importante coleção pública de Aurélia de Sousa na Casa Marta Ortigão Sampaio. O edifício, que hoje integra o Museu da Cidade, foi doado ao município pela colecionadora de arte Marta Ortigão Sampaio, sua sobrinha, e sobrinha-neta do escritor Ramalho Ortigão.

A casa está aberta ao público na Rua de Nossa Senhora de Fátima, próxima à Rotunda da Boavista, embora devido ao atual contexto se encontre temporariamente encerrada.