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Histórias da Cidade: A química de um crime ou como desafiar a ciência também ajuda a vender vinhos

  • Cláudia Brandão

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Por altura de um aniversário redondo, a Universidade do Porto e a Faculdade de Ciências ofereceram uma prenda com história à cidade. Seguindo uma das mais importantes leis da química, não criaram nem deixaram que se perdesse, pelo contrário, transformaram um local icónico num espaço onde a matéria vai voltar a reagir e a ciência a acontecer. Nos 110 anos das instituições, está de portas abertas o Laboratório Ferreira da Silva. A história em torno de um mestre só.

Não é um episódio de série norte-americana, mas havia de se tornar a primeira investigação médico-legal em Portugal. Estávamos no ano de 1890. Uma má disposição causada por doces oferecidos às crianças na Páscoa e a recomendação de serem administrados clisteres de erva-cidreira acabou por levar à morte de um rapaz. Nos contornos da trama entra, ainda, uma possível herança e os caminhos levam à suspeita do professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Vicente Urbino de Freitas, tio das crianças.

Assim se escrevia a primeira parte do argumento que haveria de agitar e apaixonar a sociedade portuense, enchendo sucessivas primeiras páginas de jornais. Realizada a autópsia, descobrem-se os alcaloides morfina, narceína e delfina. Assina, entre outros, António Joaquim Ferreira da Silva, do Laboratório Municipal de Química do Porto, e assim fica resolvido o “Crime da Rua das Flores”, apesar da contestação de especialistas – nacionais e estrangeiros – trazidos pela defesa de Urbino de Freitas.

Um pequeno passo para a justiça, mas um enorme avanço para a química forense e a toxicologia da época. Um dos tantos contributos de Ferreira da Silva ao longo da carreira, e cujo inovador relatório se tornou referência de estudo. A partir daí, o Laboratório Municipal de Química haveria de receber, frequentemente, casos médico-legais para resolver.

António Joaquim Ferreira da Silva nasceu numa cela de um mosteiro em Oliveira de Azeméis. Mudou-se para a Invicta para estudar, acabando por se doutorar em Ciências Físico-Químicas e em Farmácia na Universidade do Porto, onde chegou a ser vice-reitor. Foi na Química que sempre lecionou e onde deixou a sua maior marca.

Vencer com a Ciência e pela Ciência

No ano de 1882, a Câmara do Porto chamá-lo-ia, então, para instalar e dirigir o Laboratório Municipal de Química, projeto integrado no "Plano de melhoramentos da cidade" e inspirado no congénere de Paris. A autarquia pediu-lhe que fiscalizasse as condições de saúde pública de forma a prevenir fraudes alimentares, função que o levou a publicar numerosos trabalhos sobre Química aplicada à Higiene, Alimentação e Hidrologia, entre os quais, "Contribuição para a higiene da Cidade do Porto" (1889). Ferreira da Silva foi, ainda, diretor dos serviços de investigação da "pureza química e do poder iluminante do Gás de iluminação" da Câmara do Porto.

Pouco depois do "Crime da Rua das Flores", seria aqui que, sempre com base científica, se colocaria um ponto final em mais um tema polémico. E, mais uma vez, numa área que atacava a sensibilidade dos portuenses: os vinhos. Quando, do outro lado do Atlântico, um laboratório brasileiro disse que os vinhos portugueses vinham adulterados por ácido salicílico, foi o professor Ferreira da Silva quem conseguiu provar o contrário: que a dosagem deste ácido era natural e devida à localização geográfica das vinhas. Desmentida qualquer adição fraudulenta, seria a química a fazer florescer a exportação de vinhos para o Brasil.

Os resultados das análises foram comunicados à Sociedade de Química de França e à Academia de Ciências de Paris e publicados em diversas notas e opúsculos. A Ferreira da Silva foi atribuído o título de Conselheiro de Sua Majestade e de sócio honorário da Associação Comercial do Porto e da Associação Central de Agricultura Portuguesa.

Nas palavras escritas pela "Revista de Química Pura e Aplicada", que o professor fundou, “nunca a sua pena mergulhou na tinta odienta da malidicência, da calúnia ou do desvirtuamento das questões; vencia pela sciência e só com a sciência, respeitando-se a si e respeitando os seus adversários que inutilizava apenas no campo doutrinário da verdade scientífica”.

O laboratório que agora reabre à cidade foi o último lugar onde Ferreira da Silva trabalhou e lecionou. Muito por sua causa, o espaço, que era da Academia Politécnica e passou para a Universidade quando esta foi instituída, tornou-se um lugar privilegiado para o ensino prático e experimental da Química, para lá da teoria. Em 1922, ganharia o nome do seu mais prestigiado professor, pioneiro da toxicologia forense no início do século XX.

Lá estão agora as longas bancadas de mármore e madeira, lá está também o acervo de aparelhos - balanças, microscópios, funis, frascos, livros e o antigo cofre onde se guardavam os utensílios de platina -, que são parte do espólio do primeiro Laboratório Municipal de Química do Porto.

Um dos mais conceituados químicos do seu tempo, em Portugal e no estrangeiro, tido por muitos como o Mestre da Química, do livro de condolências, aquando da sua morte, em 1923, consta o nome de Oliveira Salazar, à data professor na Universidade de Coimbra, e até o rei deposto, D. Manuell II, enviou um telegrama de pêsames a partir do exílio. “Morreu o Dr. Ferreira da Silva! Está de luto a Química portuguesa”, escrevia a "Revista de Química Pura e Aplicada". O Prémio Ferreira da Silva é, atualmente, o maior prémio de Química atribuído em Portugal.