Cultura

Histórias da cidade: a poesia anda à solta nas ruas

  • Isabel Moreira da Silva

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No Dia Mundial da Poesia perdemo-nos por alguns recantos do espaço público da cidade, onde a arte da palavra vive na sua forma mais sublime. E recordamos o Porto como fonte de inspiração dos poetas.

Em várias ruas do Porto há poemas que habitam em azulejos, “um pequeno gesto que vai roubando sorrisos às pessoas” e que pretende “espalhar arte e poesia pela cidade de forma efémera”. O projeto de arte urbana chama-se Preencher Vazios e foi criado pela artista Joana de Abreu. A coleção, essa, está sempre a crescer; basta um olhar atento num passeio mais descontraído e – quem sabe – pode “esbarrar” em Miguel Torga, Almada de Negreiros, Florbela Espanca, Manuel António Pina, Sophia de Mello Breyner Andresen, José Tolentino de Mendonça, entre tantos outros poetas.

Na Rua da Restauração, o já antigo “Recado ao Porto”, uma rescrição do fado “Recado a Lisboa” de José Viana, sobrevive imponente num muro, comprovando como a saudade, esse sentimento tão português, é feito de momentos que nos ficam gravados na memória, quando não também na pele.

Ainda neste registo, as palavras de Ramalho Ortigão - “Foz! Saudosa Foz! / Residência querida da minha infância…” - inscritas na placa comemorativa colocada entre a Praia dos Ingleses e a Praia do Ourigo, podem ser vistas, lidas e ditas em voz alta com o oceano Atlântico defronte. A homenagem foi feita pela União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde, por altura do centenário do falecimento do escritor portuense.

Mais a oriente, o mural de azulejos à entrada da Escola EB 2/3 Pires de Lima dá corpo a este nobre pensamento de Eugénio de Andrade: “Não há nenhuma cidade, assim, / que subitamente se não torne secreta”.

Não há, efetivamente. Que outra cidade se daria ao génio e ao trabalho de diligentemente colocar um verso da poeta Filipa Leal, também ela do Porto, numa faixa entre duas árvores, algures numa rua do Bonfim? “Havemos de ir ao futuro”, lia-se. Já tardou mais, sonha-se.

O Porto pelos olhos e pelo coração dos poetas

São poemas e citações apaixonados, contemplativos, alguns com um quê de angústia presa aos fios de cada palavra. Têm todos em comum a cidade do Porto. Aqui fica uma pequena seleção.

Nasci no Porto, a cidade e seus arredores
As praias próximas, descendo para sul
Permanecem para mim a pátria dentro da pátria,
A terra materna,
O lugar primordial que me funda...
Porque nasci no Porto sei o nome
Das flores e das árvores
E não escapo a um certo bairrismo.
Mas escapei ao provincianismo da capital
(Sophia de Mello Breyner Andresen)

METAMORFOSE

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.
Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se reflectem na água.
E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter…
uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.
(Jorge de Sena)

(O Eugénio de Andrade espera-me num Café.
Atravesso as ruas do Porto – a cidade onde nasci
- com os punhos cerrados de dor.)

Não nasci por acaso nestas pedras
mas para aprender dureza,
lume excedido,
coragem de mãos lúcidas.

Aqui no avesso da construção dos tempos
a palavra liberdade
é menos secreta.

Anda nos olhos da rua,
pega lanças aos gestos,
tira punhais das lágrimas,
conclui as manhãs.

E principalmente
não cheira a museu azedo
ou a musgo embalado
pela chuva na boca dos mortos.

Começa nos cabelos das crianças
para me sentir mais nascido nestas pedras.

Porto
- cidade de luz de granito.
Tristeza de luz viril
com punhos de grito.
(José Gomes Ferreira)

“Se nessa cidade há muito quem troque o B pelo V, há muito pouco quem troque a honra pela infâmia e a liberdade pela servidão”
(Almeida Garrett)

"O Porto não é um lugar. É um sentimento”
(Agustina Bessa-Luís)

Numa cidade que transpira poesia, é recente a manifesta intenção da Comissão de Toponímia em eternizar o nome de escritores e poetas nas ruas do Porto. Em setembro do ano passado, propôs essa mudança em 15 arruamentos do Bairro Rainha D. Leonor.