Sociedade

Histórias da cidade: a memória viva de Nuno Canavez, a partir da sua Livraria Académica

  • Paulo Alexandre Neves

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Tem sempre uma história para contar. Com algum humor à mistura, os livros por tema, não se deixa esmorecer pelos tempos que correm, de quase ausência de clientes. Já lá vão 75 anos e hoje é uma das figuras incontornáveis da vida cultural da cidade. Recentemente, a Câmara Municipal do Porto prestou-lhe uma homenagem pela sua longa carreira, quase sempre na Livraria Académica. Esta é uma história viva, com um protagonista longe da reforma: Nuno Canavez.

Longe vão os tempos em que o menino, nascido em Vale do Juncal (Mirandela), chegava à cidade para trabalhar como marçano na Livraria Académica, fundada em 1912 por Joaquim Guedes da Silva. Tinha 13 anos e Nuno Canavez mal sonhava que um dia aquele espaço seria seu.

Que cidade encontrou quando cá chegou?
Era uma cidade pouco limpa e, portanto, esquecida no meio disto tudo. Naquele tempo, as pessoas responsáveis não dedicavam à cidade aquele carinho a que ela tinha direito. Considero a cidade muito bonita, embora muita gente ache que o granito a desfigura, mas é, até certo ponto, imponente. Gosto muito da cidade.

Que recordações tem dessa altura?
Muito poucas. Arranjei emprego aqui, como marçano, e, à noite, estudava na Escola Comercial Oliveira Martins (Rua do Sol). Tenho impressão que, talvez, houvesse mais contato com os amigos. Vivia-se mais em companhia das amizades que se iam criando.

Desfia memórias, sempre com a Livraria Académica como epicentro. Ali permaneceu até "fazer a tropa". Voltou, para, mais tarde, tentar a sorte numa outra livraria. "Houve um cliente que tinha uma biblioteca muito grande e que estava a pensar, com certeza, que qualquer diria morrer e achou por bem vendê-la", recorda Nuno Canavez. "Montou uma livraria e abordou-me. Era sempre melhorar um pouco a vida", acrescenta.

É, então, que funda a Livraria Lusa, na Rua de Cedofeita. Ali permaneceu apenas quatro anos. E explica porquê: "Na realidade, esse meu sócio só olhava para o capital. Enquanto a mim me seduz imenso a compra, ele era a venda. Achei que assim não íamos a lado nenhum".

Precursor na criação de catálogos e exposições temáticas

Famosos ficaram os catálogos que foi criando, ainda na Livraria Lusa, mas, sobretudo, na "Académica", para onde voltou e se tornou, primeiro, sócio e, depois, proprietário, após a morte do seu fundador, Joaquim Guedes da Silva.

Foi a primeira livraria a publicar catálogos, que se tornaram bastante conhecidos.
Ainda lá (na Livraria Lusa) fiz uns catálogos, com um duplicador. Uma coisa manual, mas que resultava porque não havia mais ninguém que os fizesse. Já cá, convenci o sr. Guedes da Silva a comprar uma máquina elétrica para fazer catálogos com uma certa periodicidade. Resultou e de que maneira. Era fácil vender metade do catálogo no espaço de um mês e meio. Livros selecionados, entre raros e primeiras edições. Isso deu origem a que intensificasse a produção de catálogos. Fui, de facto, o primeiro a lançar catálogos no Porto.

Para além disso fazia também exposições temáticas…
Isso era para atrair mais gente à livraria. Tinha muito material sobre os mais variados assuntos. Resultou, durante uns anos. Aparecia muita gente, mas, como tudo, acabou por morrer com o tempo.

Nessa altura, no Porto, havia também muitas tertúlias. Fazem falta?
Tudo o que seja contatar uns com os outros, trocar impressões é fundamental. Essas tertúlias, ainda que tratassem, sobretudo, de livros, abordavam também outros assuntos. Ventilava-se por aqui muitos assuntos. Era sempre interessante ouvir colecionadores, bibliógrafos a trocarem impressões sobre determinado livro, edições, o grau da raridade. Organizei, mais do que uma, sobre o Porto, as encadernações, as lutas liberais. Era bem-sucedido e juntava muita gente. As pessoas compareciam, mas era preciso estar também atento aquilo que se passava.

"Isto [a Livraria Académica] é o meu refúgio"

Fala dos livros como poucos, não esquecendo os clientes, dos mais importantes, como chefes de Estado, ao simples comprador, cada vez mais raro. Nuno Canavez faz uma espécie também de catalogação: "Havia o bibliófilo, o cliente que mais estimava, porque se interessava pelo livro. Eram, sobretudo, muito interessados em determinados autores, épocas. Tinham pelo livro uma estima muito especial".

"Havia os colecionadores que só queriam obter espécies raras, mas não para as ler. Estou convencido que, maior parte deles, não liam coisa nenhuma. Era só para dizer aos amigos que tinham, por exemplo, a primeira edição do 'Só', do António Nobre, ou um livro do Cesário Verde", frisa, acrescentando um terceiro tipo de clientes: "os correntes, que compram para se distraírem, obter mais conhecimentos".

E, hoje, que tipo de clientes frequentam a Livraria Académica (Rua Mártires da Liberdade, 10)?
Nos dias de hoje está como nunca esteve. Estou aqui há 75 anos (pausa)…. Não sei se é a situação que atravessamos, porque não há dinheiro, também não podemos travar o progresso, mas, hoje, as pessoas não compram livros, consultam. A juntar a tudo isto, parece-me que há um desinteresse muito acentuado, principalmente na juventude. Hoje, é muito raro entrar aqui um jovem. Tenho dias de não entrar aqui ninguém. Isto nunca me tinha acontecido. Não há memória de isto estar tão mal. Hoje, faço catálogo pela internet e vendo um ou dois livros.

75 anos de dedicação aos livros. Nunca se cansou?
Não. Aliás, isto é o meu refúgio. Em casa não posso estar. Todos os dias preciso de mexer nos livros e falar com quem aqui vem. Falamos de tudo. Também da cidade. As pessoas já se mentalizaram que, de facto, vivem numa cidade com muito mérito. E bonita. Gosto imenso da cidade.

E lê?
Todas as noites, meia-hora a uma hora, no mínimo. Clássicos do século XIX e modernos. Cito um, que adoro: Miguel Torga, porque é da minha região (Trás-os-Montes). Gosto sempre dos autores que escrevem para toda a gente. Há outros que tento ler, mas não consigo entrar. O mundo deles é outro, totalmente diferente do nosso, com uma linguagem muito rebuscada.

Sobre a recente homenagem da Câmara Municipal do Porto, Nuno Canavez é perentório: "Faço parte da história da cidade. Não gosto de homenagens, mas depois refleti e disse a quem teve a ideia (José Manuel Martins Ferreira, autor de vários livros dedicados à Livraria Académica): 'continue com esse desejo de homenagem'. Se não consentisse era ingrato. Cortar-lhe esse desejo de fazer essa homenagem seria uma injustiça da minha parte".