Sociedade

Histórias da Cidade: A flor da liberdade que trouxe o dia inicial inteiro e limpo à Invicta

  • Cláudia Brandão

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Filipa Brito

“Grândola Vila Morena, terra da fraternidade. O povo é quem mais ordena, dentro de ti ó cidade”. Passavam poucos minutos da meia-noite de dia 25 de Abril. O ano é o de 1974, e Leite de Vasconcelos lia o poema de José Afonso enquanto as ondas da Rádio Renascença levavam a um país em ditadura o som das botas a marchar que iriam dar, enfim, significado à palavra Liberdade. No Porto, havia quem há muito se preparasse para o dia de dar vida à revolução.

Uma estudante, um militar, um fotógrafo reacionário. No dia em que se assinalam 47 anos daquela madrugada que se esperava, os três vértices da mesma luta servem para contar a história do momento em que “o dia inicial inteiro e limpo” despontou na Invicta.

O Primeiro de Janeiro de 26 de abril de 1974 descreve a cena: “Um coronel fala à multidão da varanda do quartel-general do Porto: ‘Queria dizer-vos, a impressionante e patriótica manifestação dos poucos que aqui estão representa, para nós, a manifestação de todo o país’”. No entanto, até aqui chegar, muito andava a ser feito na clandestinidade.

Entrada para a faculdade e professora passado pouco tempo, Manuela Matos Monteiro teve o seu papel no movimento estudantil que, desde o Maio de 68, viajava desde França. Sabendo da “fortíssima vigilância da polícia política”, “o Café Piolho era onde tudo acontecia”, conta em entrevista ao JornalismoPortoNet. Ali, na Faculdade de Ciências da U.Porto, na Associação de Estudantes da FEP, mas também na sua própria casa, onde organizou reuniões clandestinas.

Discutia-se a liberdade, a democracia e o fim da guerra colonial. Produziam-se comunicados para distribuir nas faculdades e nos bairros sociais. Liam-se os livros censurados, quiçá comprados na extinta livraria Leitura, cujo proprietário, Fernando Fernandes, sempre os disponibilizou à revelia do regime.

Os nomes de Manuela e do marido já estavam sinalizados na PIDE, mas as ações não pararam: o boicote à Queima das Fitas quando atiraram ovos à mesa da Sessão Solene reivindicando a liberdade de manifestação, o momento em que uma centena de estudantes em contestação à porta da atual Reitoria da U.Porto foi fechada numa sala, incluindo o marido de Manuela, o que a fez correr para casa para eliminar todo o material clandestino que guardavam.

Houve apenas um momento em que pensou deixar tudo para trás e fugir para França: quando o marido foi chamado para a guerra. Precisamente no dia seguinte, deu-se a revolução que veio “devolver a sensação de respirar a quem já não tinha ar”, confessa.

A marcha da vitória de Dom Manuel II à Picaria

Nessa madrugada, o Coronel Castro Carneiro era um homem menos ansioso do que Manuela Matos Monteiro. Sabia o que ia acontecer, tinha tudo a postos. Estava preparado. Quando a rádio deu o sinal, foi tomado o quartel-general, o CICA - Centro de Instrução e Condução Auto, que hoje funciona como unidade do Hospital de Santo António.

“O Comandante veio cá fora e disse: ‘Meus senhores, vamos fazer isto assim-assim, mas se houver alguém que não o queira fazer dê um passo em frente!´. Houve um furriel que deu um passo em frente. A esse furriel foi dito: Vais para a prisão!´”, conta Castro Carneiro, em entrevista ao jornal Etc e Tal.

Nas mãos de um militar de 28 anos, que frequentou a Academia Militar com Salgueiro Maia, ficou a responsabilidade de prender o Chefe de Estado-Maior da Região Militar Norte, que “foi perfeitamente civilizado, percebendo que eu o ia deter quer ele quisesse, quer não quisesse”.

Ao mesmo tempo, noticiava o Primeiro de Janeiro, “o aeroporto de Pedras Rubras, que foi encerrado, foi ocupado por forças que vigiavam toda a área (…) as pontes da Arrábida e de D. Luís estão guardadas nas entradas e saídas da cidade”, e chegava de Lamego a artilharia mais pesada. Por esta altura, já o regime cortava as ligações telefónicas.

Chamado a repô-las, na Rua da Picaria, Castro Carneiro viu os populares a reagir com o atirar de pedras à tentativa de intervenção da polícia, na Avenida dos Aliados. Foi seguido por largas dezenas de carros, metidos no meio da sua coluna. “Para mim, foi a marcha da vitória”, recorda. Foi a partir de uma barbearia que ligou para o quartel a contar o que se passava nas ruas: “era o fim do mundo!”.

Que o fascismo caísse e não voltasse mais

Não um fim, mas o início de um mundo totalmente novo. Entre os que tinham as pedras na mão, estava Sérgio Valente. Na altura com 32 anos, o fotógrafo lembrou ao Expresso, precisamente, como “o comandante da polícia mandou carregar sobre as pessoas que estavam a comemorar a liberdade”. “Vi um polícia a bater num jovem e peguei numa pedra para tentar atingi-lo, mas surgiu outro agente sem eu contar. Deu-me uma bastonada que me abriu a testa. Muitas vezes se pergunta: Onde é que tu estavas no 25 de Abril? Eu costumo responder que estava a levar porrada. Nem no dia da liberdade me pouparam”, conta.

Porque a PIDE há muito estava no encalço de Sérgio Valente, que, por três vezes, foi parar aos calabouços da polícia política, no edifício que é hoje o Museu Militar do Porto, na Rua do Heroísmo. “Fizeram de tudo para me provocar. Maltrataram-me, aplicaram-me a tortura do sono, bateram-me até quase me matarem, levei socos na garganta. Vi a morte à minha frente”, lembra o fotógrafo.

Até no seu estúdio de fotografia, na zona da Batalha, entraram. Só por malabarismos não deram com o emblema do 50.º aniversário do PCP dentro da carteira da mulher, nem com o envelope com os jornais proibidos pelo regime, nem mesmo com as inúmeras fotografias e negativos altamente incriminatórios.

Esquecida que ficou em casa a sua mítica Rolleicord, Sérgio tirou poucas fotos naquele dia de abril, apenas com uma pequena câmara de amador, porque, explica, “naquele momento, queria que o fascismo caísse e não voltasse mais. Estava há tanto tempo à espera da liberdade que queria era vivê-la com as pessoas”.

Caído o fascismo, o Porto haveria de sair em massa à rua verdadeiramente a 1 de maio. E aí, sim, Sérgio Valente correu a cidade de máquina na mão, criando um autêntico espólio documental do que foi a festa do 25 de Abril na cidade. O resultado foi exposto pelo Município nas comemorações dos 45 anos da revolução. Nas suas fotos, todos os portuenses são protagonistas de luta e liberdade.