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Histórias da Cidade: 500 anos a abrir os caminhos da prosperidade portuense

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Filipa Brito

“Em um frigidíssimo dia de janeiro de 1847, por volta das nove horas da manhã, o Sr. Hermenegildo Fialho Barrosas, brasileiro grado e dos mais gordos da cidade eterna, estava a suar, na rua das Flores, encostado ao balcão da ourivesaria dos Srs. Mourões”. Assim escrevia Camilo Castelo Branco em “Os Brilhantes do Brasileiro”, o enredo de mais uma história passada na rua das histórias e que construiu parte da história social e comercial do Porto. Em 2021, a cidade assinala os 500 anos da Rua das Flores.

Foi em 1521 que D. Manuel I dava ordem para que a cidade ribeirinha e portuária desbravasse trilho para norte através da abertura da Rua de Santa Catarina das Flores a partir do centro que representava, já na altura, o Largo de S. Domingos, assim batizado pela proximidade com o Convento com o mesmo nome, albergue de monges dominicanos.

Os verbos “rasgar” e “romper” são os mais conjugados para descrever o que fez aquela artéria na teia urbanística da cidade. Por ali passaram a circular, em constante crescendo ao longo dos anos, as pessoas, os comerciantes, as vendedeiras, cavaleiros e carros de bois em direção à Porta de Carros, com o norte no sentido e a abertura comercial a cidades e vilas de Entre Douro e Minho como destino. Um convento masculino na partida, e um mosteiro feminino – o de São Bento de Avé Maria (sim, de onde agora partem os comboios) – na chegada.

Os terrenos – que, diz-se, eram campos de flores - estavam divididos entre a Mitra e o Cabido da cidade e assim continuaram até quando as primeiras casas começaram a ser edificadas. O bispo D. Pedro Costa escolheu sinalizar a sua parte com uma roda de navalhas de Santa Catarina, enquanto a figura de São Miguel guardava o que pertencia ao Cabido. Essa distinção ainda ali se ostenta, se vista com atenção.

A nova rua foi a escolha da nobreza para se começar a fixar no Porto, aproveitando o fim da prerrogativa que vigorava na cidade impedindo os nobres de se fixarem no burgo. Nomes como os Cunha Pimentel, os Ferrazes Bravo ou os Sousa e Silva definiram, desde logo, a riqueza que haveria de circular naquela artéria.

Literalmente, uma vez que ali chegaram a existir mais de quatro dezenas de ourivesarias, tornando-a popularmente conhecida como “Rua do Ouro”. Enquanto os objetos de ouro e prata eram comercializados no lado norte da rua, a sul ficavam os armazéns de malhas, as mercearias de chá e café, as papelarias e as lojas de ferragens.

Pelo meio, o frenesim. Ao tornar-se uma das ruas mais centrais da cidade, pela Rua das Flores tudo passava. Tudo, inclusive as procissões. As que decoravam janelas e varandas com colchas e bandeiras, e também, nos séculos XVIII e XIX, vindos da Cadeia da Relação, os condenados à morte em direção à forca que era montada na Ribeira.

Logo no início da Rua das Flores, no gaveto com o largo de São Domingos ainda se ergue a pedra armorial da família Cunha Pimentel, que nele desembolsou, no século XVIII, 40 mil réis. Eram dela os cinco prédios seguintes, até à casa onde nasceu D. Jerónimo de Távora e Noronha, deão da Sé do Porto e mecenas da vinda de Nicolau Nasoni para o Porto.

Ali ganhou espaço a igreja da Misericórdia do Porto que, pela mão de D. Lopo de Almeida, que a ela deixou a sua fortuna, modernizou o hospital de Santa Maria de Rocamador. É Nasoni que assume a autoria da fachada da igreja que hoje se vira para a Rua das Flores.

Foi a partir de espaços naquela artéria que se publicaram duas importantes revistas de poesia: “O Bardo”, pelo mercador de panos António Pinheiro Caldas, e “A Grinalda”, pela mão do ourives João Marques Nogueira Lima. E Camilo Castelo Branco ainda ali foi buscar inspiração para “A filha do Arcediago”, de 1854.

Chegados a 1890, tinha lugar a mais famosa história que por aquela artéria se conta. O “Crime da Rua das Flores” deixou o lugar em alvoroço com todos os ingredientes de filme: uma herança, um envenenamento, a prisão de um tio, a prova forense, e a condenação. Assim se escrevia o argumento da trama que haveria de agitar e apaixonar a sociedade portuense, enchendo sucessivas primeiras páginas de jornais.

Dela tanto se disse, só indiferente nunca foi. “Rua dos fidalgos e dos mercadores, dos ourives e dos amores”, descreve Horácio Marçal, ou “rua mui nobre”, considera João de Barros. “Uma rua digna de Florença”, comparava Eugénio de Andrade, enquanto para Helder Pacheco “toda a rua é um museu de arquitetura e de elementos artísticos”.

Com a devida distância do tempo, há palavras que, aos 500 anos, ainda farão sentido.