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Francisco Rocha Antunes: “Os comerciantes que regressam ao Mercado do Bolhão estão preparados para enfrentar o futuro”

  • Paulo Alexandre Neves

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Filipa Brito

Francisco Rocha Antunes liderou o Gabinete do Mercado do Bolhão (GMB), conjuntamente com a arquiteta Cátia Meirinhos. Conhecedor profundo de todo o processo da obra do mercado, especialmente os acordos estabelecidos com os comerciantes históricos, admite que este foi o desafio “mais apaixonante” que já teve na sua vida profissional. “A princípio eles não tinham razão para acreditarem em nós - éramos o quarto projeto que conheciam - mas com o desenvolvimento do processo foram percebendo que estávamos a falar a verdade”, garante.

Como se envolveu no processo de recuperação do Bolhão?
O Porto é uma cidade onde tudo se discute e quando, em 2004, houve uma discussão sobre a possibilidade de privatização do Bolhão defendi então, num conjunto de artigos, a existência de um mercado municipal de frescos. Não foi isso que, na altura, a Câmara decidiu fazer, tentando uma concessão a privados, que não correu bem. Quando foi preciso fazer a inversão desse processo alguém se lembrou do que eu tinha escrito e, em 2009, pediram-me que fizesse um programa para um mercado municipal de frescos. Também voltou a não acontecer nada. Quando o dr. Rui Moreira foi eleito presidente da Câmara desafiou-me, em 2014, para coordenar o processo e estratégia de restauro e modernização do Bolhão. Na sequência disso foi criado o Gabinete do Mercado do Bolhão (GMB), de que fiz parte, desde o primeiro dia, conjuntamente com a arquiteta Cátia Meirinhos, a que se juntaram, mais tarde, a doutora Cristina Lisboa e o doutor Francisco Castro. Formalmente, a minha relação com a Câmara Municipal começou em 2014. Durante quatro anos estudámos, entrevistámos cada um dos comerciantes e inquilinos, percebemos bem qual era a história do mercado, desenhámos um plano, uma estratégia nova e, depois, falámos com os comerciantes para lhes explicar qual era a ideia. Teriam que voltar a recuperar as regras tradicionais do mercado, escolher as categorias, que redesenhámos, e que seriam transferidos para o Mercado Temporário.

Como correu a transferência para o Mercado Temporário?
O processo não foi fácil. É bom lembrar que levámos quatro anos a preparar as obras. Fizemos dependê-las umas das outras e, durante esse processo, fomos sempre falando com os comerciantes. Foi preciso que eles acreditassem e tivessem a coragem de mudar de um sítio de onde nunca tinham saído para dar espaço a que as obras se realizassem. Uma primeira grande mudança para um sítio que era diferente: uma cave, num centro comercial e, sobretudo, um espaço coberto. Essa adaptação tem sempre o seu tempo, mas, passado poucos meses, perceberam que, como solução temporária, ela lhes permitia manter a atividade e a lógica do Bolhão vivo.

Agora que o Mercado Temporário fechou que balanço se pode fazer?
Foi o melhor sítio que podíamos ter arranjado. Era muito importante que tivesse algumas caraterísticas que estavam ali reunidas. A primeira, talvez a mais importante, era a proximidade. Estávamos a 150 metros do Bolhão. Com uma vista direta para o mercado tradicional, a ideia era não perder os clientes que existiam e isso conseguiu-se. Praticamente todos os clientes que frequentavam o Bolhão foram para o Mercado Temporário. Mas era importante também terem novas condições: de funcionamento, apoio à atividade de comércio, condições para que pudessem aplicar as melhores regras de higiene, exposição de produto. Tudo isso foi conseguido naquele espaço. Olhando para trás foi uma excelente solução e escolha de sítio.

Tudo foi sendo explicado [aos comerciantes] e com uma enorme transparência

Como foi gerir as expetativas dos comerciantes ao longo destes anos?
Instalámos o Gabinete do Mercado do Bolhão dentro do Mercado Temporário, permitindo que estivéssemos, diariamente, em contato com os comerciantes. Essa proximidade nunca foi perdida pelo que todos os pequenos problemas que iam aparecendo foram, naturalmente, resolvidos. Ao fim de algum tempo, foi criada uma relação de confiança entre os gestores do processo e os próprios comerciantes. Quando tivemos alguns percalços, como foi o caso da Covid’19 ou questões de obra, mais de natureza técnica, tudo foi sendo explicado [aos comerciantes] e com uma enorme transparência. A princípio, eles não tinham razão para acreditarem em nós - éramos o quarto projeto que conheciam -, mas com o desenvolvimento do processo foram percebendo que estávamos a falar verdade.

Sessenta e cinco dos 90 comerciantes vão voltar ao recuperado Mercado do Bolhão. Os que não voltam alegaram algum motivo em especial para o fazer?
Quando começámos a gerir o processo, a idade média dos comerciantes do Bolhão era de 65 anos. Naturalmente, muitas pessoas já estavam numa idade avançada da vida e sem sucessores, familiares ou auxiliares. Não tiveram a energia para ir para o Mercado Temporário e, depois, voltar ao mercado reabilitado. Foi uma decisão deles, nunca nossa. Uma das condições que a Câmara permitiu foi que, quem tivesse continuadores, pudesse fazer a transferência para essas pessoas. Por isso, já há alguma renovação do tecido de comerciantes que vão voltar dentro da lógica clássica: transmissão dentro da família ou a auxiliares há mais de cinco anos. Os 65 comerciantes históricos, como lhes chamamos, que regressam ao Mercado do Bolhão já resultam do processo de aplicação das regras clássicas de transmissão das bancas em mercado. Só não veio quem não tinha para quem transmitir ou energia para voltar, agora, ao mercado. Estamos a falar de pessoas com mais de 80 anos.

Que trabalho houve junto dos comerciantes para os convencer a voltar?
Se há componente deste processo que deve ficar registada é a do enorme envolvimento com os comerciantes. Em novembro de 2014 fizemos uma primeira entrevista individual, a todos. Nunca, em tempo algum, alguém tinha falado, individualmente, com eles. Fizémo-lo para percebermos o que faziam, o ânimo e os problemas que tinham, do que se queixavam, o que achavam que deveria ser feito, a que horas funcionavam, que tipo de apuro faziam. Antes de desenhar qualquer programa, ouvimo-los com muita atenção. Passados seis meses desenhamos um programa. Houve, então, uma segunda ronda em que lhes foi dito: primeiro, só vos ouvimos, agora, são vocês que nos ouvem. Explicámos toda a estratégia, sem propor uma decisão naquele momento, dando-lhes os dados para que, com tempo, pudessem escolher o caminho que queriam fazer. Só quando chegámos à terceira ronda é que lhes pedimos decisões. Todo o processo foi feito individualmente, com enorme acompanhamento e, sobretudo, muito tempo para tirarem dúvidas e os deixar confortáveis nas decisões fundamentais para as suas vidas. Quando eles mudaram para o Mercado Temporário já sabiam as regras que iam lá ter, que categorias iriam funcionar. Estavam também a assumir o compromisso de regressarem ao Mercado do Bolhão.

Preparámos os comerciantes históricos para o regresso, aos novos vamos acolhê-los com muito gosto

Muito se fala da “alma” do Bolhão. Ela não se perdeu.
De todo. Sempre considerámos, estrategicamente, que o património do Bolhão são os seus comerciantes. Em qualquer dúvida que houvesse no processo prevalecia a perspetiva dos comerciantes históricos.

Qual o critério de escolha dos novos comerciantes?
Para eles vai ser uma estreia absoluta. Eles nunca entraram no Mercado Temporário. Este foi, exclusivamente, para os comerciantes históricos. Já foram feitos dois concursos públicos, e por causa da pandemia, para preencher as bancas que faltavam. Os novos comerciantes nunca estiveram no Mercado do Bolhão. Preparámos os históricos para o regresso, aos novos vamos acolhê-los com muito gosto. Aliás, no programa delineado organizámos os produtos alimentares em 22 categorias. Foram desenhadas, tendo como preocupação dar diversidade e gama de produto a cada comerciante. Quem tiver licença para vender fruta só vende fruta, quem tiver para vegetais só vende vegetais. Esse foi o princípio, que reintroduzimos, das regras históricas que existiam no Bolhão. Nunca quisemos agravar as regras de concorrência no mercado. Por exemplo, se tínhamos, inicialmente, cinco bancas de frutas e duas foram embora só abrimos vaga para duas, não para mais. Para as categorias novas, que não tinham ninguém, abrimos até três. Assim, não agravamos, sempre que possível, as condições de concorrência, com exceção quando estavam sozinhos. Sempre num princípio de mistura categorias e alargando às que não existiam.

Vai acabar a “confusão” de produtos que existia no antigo Bolhão.
Quando os comerciantes foram para o Mercado Temporário já tinham conhecimento das categorias definitivas. Tiveram quatro anos de venda desses produtos. Os comerciantes que regressam, agora, ao Mercado do Bolhão estão absolutamente preparados para enfrentar o futuro, com as regras do “Temporário” e que são as mesmas que os novos vão ter de respeitar. A ideia foi preparar os comerciantes históricos para uma futura concorrência quando ela aparecer. Essa foi a prioridade dada.

Este foi o desafio mais complicado e aliciante que tive, até hoje, na minha vida profissional

Que critérios foram seguidos para a criação das 22 categorias e catalogação de mais de quatro mil produtos?
Utilizamos as categorias definidas pela Agência Europeia de Segurança Alimentar. Foi com base nessa estrutura de produtos que desenhamos as categorias base. Depois, fizemos algumas adaptações que tem muito a ver com a história do mercado. Por exemplo, e porque nos pareceu natural, pusemos o limão na fruta. As senhoras das hortaliças protestaram porque, desde sempre no Bolhão, os limões vendiam-se também com as hortaliças. O que fizemos? O limão vende-se na fruta e nas hortaliças. Mas é o limão e não a categoria toda. Ou seja, foram feitos alguns ajustamentos para não ter uma interpretação cega e administrativa. Três semanas depois do Mercado Temporário estar a funcionar, as categorias estavam ajustadas e, hoje, são pacíficas.

O Gabinete do Mercado do Bolhão foi essencial?
Cumpriu a sua missão, preparando a estratégia e acompanhando todo o processo de desenvolvimento. Há alguns anos que, formalmente, se diluiu e a gestão foi entregue à GOPorto, onde se juntou a doutora Tânia Coelho, como diretora do mercado. A estrutura que estava no Mercado Temporário, que resultou da evolução do Gabinete para a empresa municipal, vai continuar no mercado reabilitado.

Vai frequentar o renovado Mercado do Bolhão?
Sou um grande entusiasta do Bolhão. Além de ser historicamente único tem uma caraterística fundamental: em cada banca existe um conhecimento do produto que não encontramos em muitos lados. Podemos ter o sabor dos produtos, beneficiando do saber de gerações. Há uma banca que está lá na quinta geração. Quando se tem cinco gerações a vender o mesmo produto, o grau de saber e conhecimento incorporado é muito grande. Isso só acontece no Bolhão.

Da sua vasta carreira profissional, este foi o seu grande desafio?
Este foi o desafio mais complicado e aliciante que tive, até hoje, na minha vida profissional. É um desafio irrepetível, com enorme relevância para a cidade e em que tivemos que por as pessoas no centro de um processo de transformação imobiliário. Conseguimos fazer e, por isso, estou muito orgulhoso do trabalho que toda a equipa fez. A partir de quinta-feira, as pessoas vão perceber porque estamos orgulhosos.