Sociedade

Em palco, no teatro e na vida, porque SomoS parte e também temos sonhos

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A noite e o dia não são iguais para todos, mas repetem-se como os ponteiros do relógio. Numa viagem de metro, num jantar em família. Como a exclusão. A opressão. “Por que não posso?” são histórias que fazem o mundo real de cada um, ainda que os papéis que interpretamos difiram e continuem a acentuar as distâncias. Resulta da segunda de três oficinas promovidas pela associação PELE com pessoas em situação de sem-abrigo ou de vulnerabilidade social, dentro do SomoS – Existimos, Criamos, Somamos (P)Artes, e é apresentado esta quinta-feira, 10 de fevereiro, na Junta de Freguesia do Bonfim.

Emílio Costa tinha um sonho: “desde pequenino, sempre quis ser ator”. Porque não poderia realizá-lo? “Eu tenho um passado um bocadinho complicado devido a drogas, álcool, roubo”, conta. No entanto – e talvez por isso mesmo – quando chegou o desafio do ASAS de Ramalde para participar no SomoS, “aceitei logo à primeira”.

Viu-se envolvido em sessões de reflexão, discussão e criação a partir das suas próprias histórias e das histórias do outro. Quatro meses de trabalho, “muita entrega e uma cumplicidade entre nós fora do normal” depois, Emílio Costa sabe de cor o papel que esta experiência assume no seu mundo: “posso dizer que me fez outro homem”.

E vai ao detalhe de partilhar que “desde que entrei para a PELE a minha vida mudou completamente, até pela minha maneira de ver o mundo, o dia-a-dia, a minha postura”. “Não sei se é por eu viver sozinho que os sinto como se fôssemos uma família. Estamos todos unidos e a trabalhar para um objetivo só: ficarmos bem connosco dentro deste espetáculo”, acrescenta ainda.

Transformar a vida com a ajuda da representação

Além da PELE, o SomoS é coordenado pela Apuro e conta com a mediação socioeducativa da Rede Europeia Antipobreza. É um dos braços do programa AIIA - Abordagem Integrada para a Inclusão Ativa, da Câmara do Porto.

Em conjunto, acredita Maria João Mota, responsável pela oficina de teatro, criaram algo “empoderador” a partir de um texto de um dos participantes. Ao “explorar histórias que sentem como uma opressão”, e que são parte da vida de todos, todos os dias, esclarece Maria João, “não se pretende romantizar a mudança ou a transformação, mas que todo este processo nos possa inspirar noutros momentos da nossa vida em que sintamos vontade de mudar algo que não nos parece justo”.

“Não julgar o livro pela capa”, acrescenta Emílio Costa. “Como tudo na vida, as aparências iludem. Nunca se deve julgar ninguém porque todos temos um passado, uns mais claro, outros mais escuro”, diz com a força da experiência.

Para Maria João Mota, o poder do teatro está em ajudar a superar incertezas nas capacidades e opiniões negativas. “Se o conseguimos fazer aqui no teatro, então se calhar também o conseguimos fazer noutras dimensões da nossa vida”, acredita.

Para a facilitadora do projeto, ainda antes de apresentar o “Por que não posso?”, já muito ganhou vida com o SomoS: “a oportunidade de experimentarmos em conjunto, de darmos a nossa opinião, de nos superarmos”, e, para lá disso, irem ver outros espetáculos e “começarmos a ter uma opinião estética e política sobre aquilo que nos rodeia”. É “esse sentimento – que não vai terminar aqui – o que eu julgo que é mais importante”, acredita Maria João Mota.

Fazer teatro para ver além do que salta aos olhos

Augusto Boal, um dos maiores do teatro contemporâneo internacional, é o criador do movimento artístico conhecido como Teatro do Oprimido, onde o Teatro Fórum que orienta o SomoS vai beber, e que faz uso de técnicas teatrais para encontrar alternativas para situações da vida quotidiana.

“Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida quotidiana". Augusto Boal

Se, no final do espetáculo, o público for convidado a intervir, basta saber que a capacidade de mudança está em todos e em cada um. Maria João Mota antecipa que esta é “uma história que não termina de uma forma positiva”, mas com uma interrogação: “o que é que vocês gostariam de mudar nesta história?”.

“Esse debate é aquilo que é mais rico. Não se trata de encontrar uma solução, porque isso não existe, mas de ensaiarmos diferentes possibilidades para mudarmos a realidade”, explica a representante da PELE.

Como também Boal imortalizou, “vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, géneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com as nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida”.