Sociedade

Deus quer, o homem sonha, a obra renasce: o retábulo-mor da Sé do Porto está como novo

  • Tiago Pimentel

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Com a necessária adaptação, as palavras imortais de Fernando Pessoa resumem o trabalho que está a ser realizado na Sé do Porto. A reabilitação da capela-mor daquele que é um dos monumentos mais visitados da cidade continua a avançar, com destaque obrigatório para a nova vida dada ao retábulo-mor, que vai ganhar uma visibilidade renovada.

Um painel gigante estabelece a fronteira entre o local de culto e o local de trabalho: os visitantes da capela-mor da Sé do Porto continuam a poder ver a imagem do retábulo-mor, impressa na tela que o cobre; mas, por trás dela, esconde-se o ferro exposto dos andaimes, os cabos elétricos, e uma parafernália de ferramentas utilizadas pelos conservadores-restauradores para devolverem o brilho e a visibilidade à peça artística.

A fase de maior azáfama já passou, mas ainda há tarefas a concluir até que possa voltar a exibir-se, em toda a grandeza, o retábulo-mor. Um trabalho meticuloso, que se vai revelando paulatinamente, de cima para baixo – da dimensão celeste para o plano terrestre, ou não estivéssemos nós a falar de um templo religioso.

“Este trabalho começou em maio, primeiro pela abóbada, depois pelos alçados, foi descendo, e o mesmo se passou no retábulo-mor: começa-se sempre de cima para baixo. A conclusão da empreitada que incluiu o retábulo-mor, a pintura mural, a abóbada, será em finais de fevereiro. Depois temos outra intervenção, que está a avançar, ao nível dos pavimentos. E estamos a preparar uma outra, para o cadeiral”, explica ao portal Porto. a coordenadora da Direção Regional de Cultura do Norte (DRCN), Adriana Amaral. “Estamos numa fase praticamente final, em breve vai ser descida a tela que está a ocultar o trabalho e as pessoas vão poder ver o verdadeiro esplendor desta peça fantástica”, promete.

Lidar com a curiosidade dos visitantes faz parte do trabalho diário dos conservadores-restauradores. “As pessoas perguntam muitas vezes, tentam passar”, conta Rita Pereira, com Inês Magalhães a completar: “Quando este painel baixa, para irmos acompanhando de longe o trabalho, nota-se que as pessoas que vêm visitar ficam mais atentas, até se sentam, a ver-nos trabalhar, porque têm uma maior visibilidade.”

“Um orgulho enorme”

Ambas reconhecem que é um privilégio estar a trabalhar no restauro de uma peça artística com tanto significado para a cidade – não só enquanto profissionais, mas também enquanto portuenses. “Eu sou do Porto e nunca tinha vindo aqui ao interior da capela-mor, porque não é permitido passar”, sublinha Rita Pereira: “O altar tem aquela visibilidade e impacto mal se entra, mas as pinturas, que são a minha área, só é possível vê-las de perto vindo aqui à capela-mor.”

“Também sou do Porto e também nunca tinha vindo cá. Sendo a minha cidade, claro que me dá um orgulho enorme poder dizer ‘Eu estive a restaurar a Sé do Porto’”, concorda Inês Magalhães.

O trabalho que está a ser realizado vai perdurar, acredita Adriana Amaral. “Estamos perante um património ímpar na cidade do Porto. São trabalhos fundamentais, para que possamos legar às gerações futuras este património que não se pode perder”, nota a coordenadora da DRCN, salientando a “enorme” relevância desta intervenção: “A capela-mor resultou de uma grande intervenção no século XVIII, uma intervenção barroca. Teve aqui os melhores artistas e chegou até aos nossos dias. Já estava com grandes problemas, sobretudo o retábulo-mor tinha muita sujidade agregada. As pinturas murais de Nicolau Nasoni também tinham ainda muitos vestígios do repinte que sofreram no século XIX e, por isso, houve esse trabalho, não só de remoção do repinte, como de estabilização da própria pintura.”

Envolvida especificamente na intervenção relacionada com as pinturas murais, Rita Pereira descreve um trabalho “conservativo, de estabilização, de limpeza, de preenchimentos, e de reintegração. O objetivo foi fazer com que toda esta pintura seja visível, que não era, de todo. Até para nós foi espetacular podermos estar a fazer o levantamento de um repinte e começarem-nos a aparecer as cores, as figuras, os animais”.

“Esta pintura é muito bonita. É uma pintura única, nada igual, que tem imensos elementos, imensos seres diferentes. Há um lado que parece um bocadinho mais diabólico do que o outro. É uma pintura que tem mesmo de ser olhada de forma muito pormenorizada”, acrescenta.

Madeiras e parafusos

É, pelo menos, inesperado que, tratando-se de uma obra de arte, na solenidade de uma igreja classificada como Monumento Nacional desde 1910, os trabalhos convivam com serras para cortar madeira, martelos e outras ferramentas elétricas, assim como produtos químicos. Mas estes utensílios são essenciais para a tarefa de conservação-restauração: “Estivemos a reapertar e consolidar a estrutura pela parte de trás do altar. Era um altar que não tinha muitos estragos, foi só mesmo o reforço de parafusos e consolidar madeiras mais enfraquecidas”, descreve Luís Marques.

Os cuidados são os normais nestas situações, com atenção aos materiais acima de tudo. “Tem que se respeitar o original, por isso é que não substituímos as madeiras e tratamos as que se encontram no local. Estando afetadas, tratamos delas e consolidamo-las, porque as novas não são tão boas como as anteriores, que cá estão”, acrescenta o técnico.

Garantida a saúde das madeiras do retábulo, o passo seguinte é cuidar dos preciosos trabalhos artísticos que se encontram aplicados sobre elas – alguns são mesmo retirados do seu local original, para tratamento e posterior reposição. Esse é o domínio de Inês Magalhães, que fala em pormenor das etapas cumpridas e a cumprir, a começar pela limpeza: “Começou-se por fazer uma limpeza a seco, uma aspiração de todas as camadas de sujidade que tinha, passando então para a limpeza química, para tirar alguns repintes, alguns óleos, alguns resíduos que se vão acumulando.”

“Fez-se uma fixação pontual do ouro, tentando assim preservar todo o ouro que está presente neste retábulo. Agora estamos na fase final, de reintegração cromática, em que vamos pontualmente às zonas que estão mais desgastadas, tapar alguns brancos, devolver a cor da madeira que está demasiado seca, devolvendo a imagem que tinha e estabilizar todos os materiais aqui presentes”, conclui a conservadora-restauradora.

Esta operação contou com financiamento do Cabido Portucalense e é a mais recente de um conjunto de intervenções estruturais que, desde 2009, têm vindo a ser efetuadas na capela-mor da Sé do Porto. Posteriormente será publicado um livro, documentando os resultados da investigação histórica em curso e a descrição pormenorizada dos trabalhos realizados. A capela-mor, tal como hoje se conhece, data dos inícios do século XVII – e o objetivo, com os cuidados que têm vindo a ser promovidos, é que possa perdurar.