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Desfila na Foz a tradição que quer ser património e deitar os males por água abaixo

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Gaguez, enfermidades nervosas, possessões demoníacas e males de pele. Este 24 de agosto é o dia de deitar os males “por água abaixo”, confiar em São Bartolomeu e mergulhar nas ondas da Praia do Ourigo. No dia em que se assinala o culto religioso, está praticamente tudo pronto para levar o património que, há décadas, une a comunidade da Foz do Douro a desfilar o mais tradicional sentimento. No domingo, sai da Cantareira o Cortejo do Traje de Papel em direção ao banho que, dizem, vale por sete.

Se vir Amália Rodrigues, D. Afonso Henrique, mas também as vinhas do Douro ou a Torre dos Clérigos a desfilar pela Foz, não se espante. Ou melhor, espante-se. Espante-se com as cerca de cinco centenas de pessoas que dão corpo e vida ao tema que une as diferentes coletividades da União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde na missão de pôr nas ruas – e no mar – o Cortejo do Traje de Papel, o ponto alto das festas em honra de São Bartolomeu.

Já adivinhou qual é esse tema? É mesmo o Património Material e Imaterial da Humanidade. E, no Bairro Social de Aldoar, já está tudo pronto: roupa feita de jornal, como no início da tradição, trabalhos manuais, cestos, sacholas, chapéus em cartão. O subtema – cosido e colado por apenas três pares de mãos – é o Património da Humanidade das cidades de Braga e Guimarães.

A associação de moradores leva 70 pessoas ao cortejo, mais uma. Esmeralda Mateus é a entusiasta maior da festa – tem os diplomas de participação todos na parede de casa e não se cansa de reforçar como “está tudo tão bonito” –, onde participa “de alma e coração” desde que a união das freguesias deu a Aldoar um lugar de pertença na tradição que a Foz do Douro já vivia desde a primeira metade do século XIX.

Para domingo, Esmeralda já chamou “toda a gente” para “gritar por nós” e ver desfilar “um trabalho que parece pouco, mas é um trabalho de tanta hora”, de “sábados e domingos até à uma da manhã”, que vem ganhando vida pelas suas ideias e por mãos “de gente de quarta classe”.

“Queremos participar se não Aldoar morre. Não pode. Temos que participar mesmo para sermos Aldoar”, sublinha com a ansiedade e a vontade evidentes.

Meses de trabalho na pele leva-os o mar

Onde a tradição também não morre é do lado do Orfeão da Foz do Douro que, este ano, leva ao cortejo o Vale do Douro. Fernanda Chalupa está há semanas a fazer adereços – “muito trabalhosos” -, enquanto outras duas pessoas assumem a parte da costura. A presidente da instituição acredita que “o envolvimento da comunidade já foi melhor”, por isso, partilha como poderia ser vital para a tradição “envolver as escolas”. “Poderiam ajudar-nos muito, aprendiam, envolviam as famílias, e eram novas gerações a entrar”, sublinha.

Cumprindo a tradição a rigor, Fernanda Chalupa vai, religiosamente, ao mar “no Dia de São Bartolomeu logo de manhã”. Sem grandes pessimismos, o que fica para trás são “apenas os desafios do dia-a-dia”. O cortejo está na rua, já passou tudo”, afirma.

É também isso que Ana Catarina Ferreira procura no banho que encerra o Cortejo do Traje de Papel.

“É um pouco o terminar de um ciclo, depois de tanto tempo de trabalho árduo, é o alívio de ter corrido tudo bem e um sentimento de alegria por fazer acontecer esta tradição há tanto tempo”, diz a vice-presidente da Associação de Moradores do Bairro Social da Pasteleira.

O que o grupo leva a desfilar pelas ruas da Foz é o Centro Histórico do Porto, um cenário costurado pelas mãos dos moradores, dos amigos que “vêm participar enquanto figurinos, gostam e querem ver-se um pouco mais envolvidos”. Aqui, a tarefa de encontrar quem vista é mais difícil do que encontrar quem costure, quem traga “familiares para ajudar porque tem um talento para fazer adereços ou para pintar”.

Ana Catarina Ferreira explica que “somos um bairro com muitos moradores, mas muitos não conhecem esta tradição porque são novos moradores e, então, não têm conhecimento do que é o cortejo de São Bartolomeu ou da importância que o cortejo tem para a Foz do Douro”. Vai-se conquistando aos poucos e “vamos conseguindo”.

Uma tradição de generosidade e orgulho

Trocar os tecidos e as agulhas por papel e cola e idealizar uma parte do “cortejo da minha cidade” foi, para Joana Bourbon, mais do que um desafio, “um orgulho, uma paixão, tem sido mesmo muito bonito”. No primeiro andar do edifício da União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde, já se reconhecem as inconfundíveis roupas de Amália Rodrigues, Carminho, Mariza ou Maria da Fé que a designer de moda criou para “contar a história do Fado através das grandes protagonistas”.

Ali ainda se corta, cose e cola e Joana enaltece como “o envolvimento da comunidade tem sido generoso”. Há meses vêm com ela trabalhando voluntários, estudantes de moda, e Joana sublinha como “as pessoas mais novas estão a começar a querer aderir e achar encantador trabalhar neste projeto”.

Com 29 anos de experiência, a designer não poupa elogios às “tradições culturais incríveis como esta e muito únicas” que o país protagoniza, mas que não vem sabendo “valorizar e criar raízes”.

Por isso, olha o Cortejo do Traje de Papel que a comunidade não deixa morrer na Foz como “uma oportunidade de mostrar a todos que nós temos coisas tão incríveis, manualidades e uma cultura que pode, perfeitamente, estar lado a lado com o resto da Europa”.

Elevar a Património da Humanidade o património da comunidade

E é, precisamente, essa a missão. É que, além de tema, fazer do Cortejo do Traje de Papel das festas de São Bartolomeu Património Imaterial da Humanidade é, agora, um desafio. Um desafio assumido pela União de Freguesias que, em conjunto com os municípios espanhóis de Mollerusa, Amposta e Güeñes, que vivem vestes semelhantes, apresentou uma candidatura à UNESCO.

Por um lado, explica o presidente da União de Freguesias, procura-se “preservar o que é esta tradição” e, por outro, “dar-lhe mais reconhecimento e visibilidade”, “trazê-la aos olhos do mundo”. “Identificámos uma oportunidade de, atendendo à natureza desta tradição e percebendo que ela tinha, de facto, um caráter muito único, associá-la a uma candidatura a Património Imaterial da Humanidade”, explica Tiago Mayan Gonçalves.

E, com isso, também alargar os horizontes do cortejo, “expandi-lo e envolver, ainda mais, a comunidade nesta prática. Trazer mais coletividades, recuperá-las para esta tradição”. Porque, não duvida o presidente da União de Freguesias, “a força reside aí, nesse caráter comunitário”, na crença conjunta de que, ali na Foz do Douro, é São Bartolomeu e o banho na Praia do Ourigo que simbolizam “o renovar da pele, o recuperar e renascer para um novo ano”.

A poucos dias de sair à rua, a única questão que preocupa Esmeralda Mateus é “que o D. Afonso Henriques não vá ao banho para ir para a exposição”, onde figurarão alguns dos trajes. “Já lhe disse para trazer uns calções para se atirar ao mar”, garante.

Tudo o resto – roupas, adereços, maleitas, pecados e outras dores – vai “por água abaixo”. “Até é mais bonito do que vender e estar a criar mais produto”, acredita Joana Bourbon, encontrando “mais valor” no “lado poético de entregar ao mar o ano e a pele”.

A devoção ao santo, o poder das águas regeneradoras e o amor à Foz

Para – tentar – conhecer a fundo a celebração em honra de São Bartolomeu e de onde vieram os primeiros usos dos fatos de papel é preciso conversar com Manuel Picarote. Um de quatro irmãos, herdou do pai, Joaquim, centenas de documentos, fotografias, cartas, recortes de jornal, tudo em torno das festividades da Foz do Douro.

“Comecei a remexer nesta papelada toda, nas imensas caixas que estavam guardadas e fui descobrindo que tínhamos aqui algo importante”. Não há dúvidas.

Tal como fez Marisa Pereira Santos. A historiadora de arte e investigadora do CITEM (Centro de Investigação Transdisciplinar – Cultura, Espaço e Memória) dedica-se, há anos, a estudar esta tradição e explica que “o culto a São Bartolomeu já está documentado na Foz do Douro pelo menos desde o início do século XIX, já havia uma prática antiga de culto ao poder regenerador das águas e ao banho santo”.

A memória oral e alguma documentação trazem, já na década de 20 para 30 do século XX, o nome de Costa Padeiro, “um antigo embarcadiço, banheiro na Praia do Ourigo, que começou a fazer algumas brincadeiras com crianças vestidas em trajes de papel, que animavam a praia no final do verão”, inspirada num ritual de passagem da linha do Equador pelo navegadores franceses.

“A prática ter-se-á fundido” com o “culto que já estava cá enraizado e a prática de banhos regeneradores que se fazia graças a São Bartolomeu”, o santo que “larga o demónio que tem acorrentado aos pés e, para proteção, acaba por encarnar nas águas”.

Com alguns interregnos pelo meio, o primeiro cortejo digno desse nome é organizado pela comunidade na década de 50. “As mães forneciam os trajes que faziam em casa, inicialmente com papel de jornal, depois começa a entrar o papel crepe”, conta Marisa Pereira Santos, sublinhando que, “apesar de não haver uma continuidade documentada, ficou uma tradição na memória das pessoas”.

"Festa é festa. E São Bartolomeu é São Bartolomeu"

Em 1963, surge o envolvimento da família Picarote, ao lado de uma espécie de comissão de festas, “que se juntava por carolice”. Este é o momento que Manuel, o filho, considera a viragem nas festividades ao santo e foi, também, a primeira vez que desfilou. “Transformaram o que era uma brincadeira, uma coisa espontânea, com a participação de duas, três dezenas de pessoas e uns banhistas, numa coisa mais importante”, acredita.

Para “colocar no mapa as festividades”, mas, acima de tudo, a Foz, o pai e os amigos “começaram a bater às portas todas a pedir dinheiro, revistas velhas, jornais” e até “garrafas para vender ao farrapeiro e fazer dinheiro”. Até cartas enviaram para televisões no Japão para conseguir a cobertura daquela que, queriam eles, “fosse a festa da cidade”.

Ainda com o desejo de assistir ao retorno do envolvimento de coletividades “com uma história muito importante nesta tradição, com pessoas de muito valor, que merecem ser lembradas e que hoje não estão a participar ativamente”, Manuel Picarote nunca deixa de falar do cortejo com emoção.

“Festa é festa. São Bartolomeu é São Bartolomeu. De uma forma ou de outra, o que interessa é que se faça, que se mantenha viva esta chama e que as pessoas da Foz, uma Foz agora mais alargada, continuem a aderir”, reforça.

A tradição sai do Jardim das Sobreiras, na Cantareira, às 10 horas de domingo e só termina no “banho que vale por sete”, no mar da Praia do Ourigo.