Cultura

Daniel Cohn-Bendit declara o primado da utopia em dia de evocar o Maio de 68

  • Dulce Pereira Abrantes

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A poucos meses do Maio de 68, Jean-Luc Godard estreia o seu filme "Weekend", mais precisamente a 29 de dezembro de 1967, em Paris.
Um filme de rutura, considerado emblemático de uma sociedade confusa e consumista, que é apresentado hoje por João Ribas, no Auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, às 21,30 horas, após o debate "imprescindível" com Daniel Cohn-Bendit, uma lenda dessa época, que está presente nesse mesmo auditório, pelas 19 horas, para falar das "Revoluções imprescindíveis" com o historiador Rui Tavares.
Neste contexto de utopia e de revolta, cinema e debate integram o tema aglutinador da Feira do Livro do Porto 2018, levando o público a (re)visitar o que foi a época de há 50 anos, onde se "adivinhava já (...) uma rebeldia em crescendo".

Em entrevista ao "Porto.", um dos principais rostos do maio de 68 desvendou alguns aspetos da época que viveu.

Quando fala da sua nacionalidade, Daniel Cohn-Bendit define-se como uma mistura, mais do que estar "entre-deux", o franco-alemão diz-se "verdadeiramente francês e alemão, alemão e francês". "Je suis le plus allemand des français et le plus français des allemands».

«Eu não escolho, digo de mim próprio de uma forma irónica que sou um bastardo franco-alemão".

Cohn-Bendit define-se, no momento presente, como um aposentado da política, que apenas se exprime de forma diferente.

"Quando estudei num internato na Alemanha, militei para ter um parlamento de alunos, era o presidente do parlamento, era uma forma de fazer política na escola. Mais tarde, fui o porta-voz de uma revolta que teve um impacto mundial - o Maio de 68 - e depois fiz parte de um partido que era extra parlamentar, na Alemanha, nos anos 70. Algum tempo depois fui deputado no partido dos Verdes Europeus, estive no Parlamento Europeu até 2014 e depois dediquei-me à atividade de comentador de política".

Dany, como se apresenta, afirmou-se pela primeira vez como "libéral-libertaire" durante a sua campanha eleitoral em França em 1994, e acrescenta também "ecologista liberal-libertário". Rejeita qualquer associação desta declaração ao termo anarquismo, com expressão na negação do princípio da autoridade na organização social. Para Bendit, em primeiro lugar, a sua origem política nos anos 60 é o movimento libertário, mas acrescenta que existem várias interpretações ou expressões do anarquismo. A sua definição era uma sociedade em auto gestão, coletivista, que definia totalmente o que deveria ser o Estado, ou uma sociedade sem estados, altamente utópica, que era um movimento que também se definia tanto como anti-capitalista como anti-comunista.

Cinquenta e três anos volvidos, quando Bendit utiliza a mesma expressão "libéral-libertaire", acredita que é preciso definir a política sócio-económica ou tomar como certo que a economia de mercado tem necessidade de uma dinâmica, a qual lhe é conferida por uma certa interpretação do liberalismo económico e político, que é muito importante, que traz o reconhecimento da força das instituições políticas, a ação dos poderes, parlamento, Estado, governo, a independência da justiça, os direitos do homem, e que, assim sendo, "libertaire" é "tentar corrigir os individualismos e as injustiças da economia de mercado, por formas de apoio mais sociais, que sejam de natureza coletivista até. Imaginemos uma economia de mercado, temos a cogestão entre empresas, ou até a auto gestão, as cooperativas, uma gestão coletiva das empresas, e depois libertárias no que concerne a gestão individual da sociedade, que na época do Maio de 68 era o casamento para todos, a liberalização da utilização de certas drogas, da homossexualidade, ou seja, uma sociedade que aceita todas as diferenças de projetos de vida".

Continua contestatário, foi copresidente dos Verdes, militou pelo acordo das alterações climáticas e defendeu isso tanto na Polónia como na República Checa. Mas também se bateu por problemas de luta pela democracia, de debate de sociedades liberais ou iliberais, enquanto presidente de um grupo do Parlamento Europeu.

"Para mim, a verdadeira utopia que existe hoje é, evidentemente, a ideia de Europa, da União Europeia, à qual poderíamos chamar os Estados Unidos da Europa. Podemos dar-lhe o nome que quisermos, mas é uma verdadeira federação europeia, com uma governança política e uma nova definição de democracia europeia".

O eurodeputado e lenda do Maio de 68 - que afirma que se deve esquecer o Maio de 68, pois aconteceu há 50 anos - assume-se como ateu e diz que quando se fala em democracia e em direitos não se trata de acreditar que eles se concretizem, mas antes é a questão de lutar por eles, e que isto é algo que não é assim tão evidente.

"Se olharmos para o mundo, tal como ele existe hoje, com os mais recentes acontecimentos nos Estados Unidos, na Rússia ou na China, os estados europeus, sejam eles de maior dimensão como a Alemanha, de média dimensão como a França ou de pequena dimensão como Portugal ou o Luxemburgo, eles não conseguiriam resistir à dominação que quem quer que fosse quisesse exercer sobre eles, fossem os americanos, os russos, os chineses ou até a Turquia, apenas com a soberania nacional. "Esta soberania nacional só se pode defender através da soberania europeia", acrescenta Bendit.

Nos finais dos anos 70 e inícios dos anos 80, Daniel realizou um documentário - "Nous l'avons tant aimée, la Révolution" - viajando pelo mundo para encontrar os atores dos anos 60.

"Viajei pela França, pela Itália, pela Holanda, pelos Estados Unidos, pelo Brasil. E foi, de facto, um documentário sobre a revolta, tudo o que inclui a revolta. São 50 minutos de história, que se desenrola à volta da classe operária, das tentativas que existiram, por parte dos grupos, autónomos ou de extrema-esquerda, ligados ao movimento operário. Fui mesmo às fábricas. Também falo do terrorismo, que decorre desses anos, e no final debruço-me sobre a democracia e o movimento ecologista. São quatro horas de filme, dos quais transcrevi as entrevistas e publiquei o livro".

"Na época, gostámos da Revolução. Também gostei do Maio de 68, mas devo dizer que escrevi um livro, intitulado 'Forget 68', porque é completamente ridículo estar sempre a perguntar, 50 anos volvidos, o que resta do Maio de 68. Não resta nada, porque o mundo mudou por completo, uma revolta nos anos 60, contra uma sociedade dos anos 60: compará-la com o mundo de hoje, é impossível".

Mesmo questionado sobre se o Maio de 68 pode ser uma espécie de modelo, afirma que "isso não existe". Por exemplo, perguntar a alguém que tenha vivido a guerra de 1914-18 para comparar a guerra do Afeganistão com essa guerra, "isso seria ridículo", declara. "Continua a ser uma guerra, é certo, mas não é comparável. O mesmo se pode dizer do Maio de 68. Temos hoje também uma sociedade, existem ilegalidades, mas não são comparáveis. Por isso digo, Maio de 68 foi um momento extraordinário para quem o viveu, para mim foi um momento inimaginável, mas já terminou. É preciso parar de olhar para trás, e quando os jovens me questionam como fazer uma revolta, eu digo 'não sei!' ".

"Se me perguntar que erros cometi em maio de 68, digo: nenhuns. Teria feito algo de forma diferente? Não sei. Estas são questões completamente idiotas. Não fazem nenhum sentido. Arrependo-me de alguma coisa? Não, em absoluto. Acho que tivemos sempre razão? Não, não tivemos. É preciso deixar o passado no passado".

Quando perguntamos a Daniel Cohn-Bendit o que faria hoje, aos 73 anos de idade, responde afirmando que não é "Dani, Le Rouge", nem o "Dani, Le Vert", nem o "Dani, Le Vieux". E termina a conversa afirmando que "hoje, o que define melhor a minha revolta é a minha utopia e a minha luta pela Europa. A utopia é algo que me faz orientar a minha ação e o meu discurso na minha vida".