Sociedade

Da FEUP para a selva amazónica

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Gabriela Ricca é estudante do 2º ano do Mestrado Integrado
em Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia da Universidade do
Porto (FEUP) e decidiu fazer voluntariado numa missão Dominicana.
Juntou-se a três Irmãs Missionárias e a um padre dominicano e, em março de
2015, partiram para Ucayali (região da selva baixa). Sepahua encontra-se entre
dois rios: o rio urubamba (o grande rio que percorre o país até desaguar no
amazonas), e o rio sepahua (afluente do primeiro). Estas missões conjuntas
funcionam há muitas décadas nesta região e são o único apoio constante às
comunidades indígenas, pois o apoio estatal é recente e curto, e as ONGs em geral
não trabalham a longo prazo com as comunidades nativas.


O objetivo inicial passava por apoiar na educação e
crescimento das raparigas que viviam no Internato de Sepahua. O Internato,
exclusivo de meninas (existe outro para meninos), foi criado e é mantido pela
Missão. Sepahua é um dos poucos locais da região que tem uma escola secundária,
daí a localização do internato. Nenhuma criança pode continuar a estudar após a
primária sem ir para Sepahua. Gabriela acabou por ficar responsável, em
conjunto com a Hermana Meche, pelo Internato de Mulheres, o que significava
criar e manter uma rotina diária para as 25 internas de quatro etnias
diferentes. Estas raparigas saíam de casa aos 12 anos, pelo que, exceto nas
férias de Natal e verão, estavam sozinhas num mundo novo e desconhecido, sem
pais ou familia étnica. "Não era fácil, mas a alegria e a vontade com que estas
miúdas viviam cada dia, torna qualquer coisa possível e verdadeiramente boa.
Elas foram o principal foco da minha atenção durante o ano, e também a maior
fonte de alegria", conta a estudante.


Sendo uma experiência longa, acabou por entrar
noutros projetos e por ter outras responsabilidades. Pouco tempo depois de ter
chegado começou a dar aulas na escola primária de uma comunidade nativa aos
alunos de 4º, 5º e 6º ano.  "Foi uma experiência diferente: as aulas, as
condições, os miúdos? tudo é distinto do habitual: não passavam 5 minutos sem
algum miúdo trepar pela parede para espreitar lá para fora, só para não se
sentir tão preso; havia a necessidade do trabalho ser individual, de explicar
uma pirâmide dos alimentos sem leite, pão ou sopa e redesenhá-la com mandioca,
peixe, banana e  água fervida e de ensiná-los a estar numa escola, a vir
todos os dias às aulas, a não explodir as canetas para brincar com a tinta e
manter os cadernos com folhas". Foi uma experiência que a ensinou a definir as
prioridades?. Após algum tempo, Gabriela já ia a casa de alguns destes alunos e
conhecia os seus pais e irmãos, os seus hábitos, costumes, medos e desejos.
 No entanto, sempre esteve consciente de um facto: "por mais passos que
demos, por mais que nos adaptemos e entremos na vida de outra sociedade, nunca
faremos verdadeiramente parte dela. É bom deixarmo-nos entrar, mas sempre
sabendo que há um limite".


Além do apoio ao internato e das aulas, Gabriela
ajudou ativamente na Rádio Sepahua 100.5 FM, uma emissora de rádio sediada em
Sepahua que a Missão construiu em 2000 e que serve para informar e formar os
cerca de 12000 nativos das comunidades próximas: aprendem a importância de
ferver a água antes de cozinhar e de tomar um banho diário com sabão; ficam a
saber quando podem viajar a Sepahua para ir tomar uma vacina; escutam
atentamente cada relato futebolístico da liga de Sepahua; podem ouvir a missa
aos domingos e programas didáticos, musicais ou de diversão sempre e comunicam
entre si. "Trabalhar para a rádio significa cobrir as manifestações nativas
contra as multinacionais petrolíferas, e ao mesmo tempo as reuniões entre estas
mesmas empresas e o governo local; é comunicar uma morte, e passado umas horas
comunicar duas vidas. O crescimento desta rádio é difícil dado que a energia
elétrica só existe durante umas horas fixas por dia e fazer com que esta rádio
funcione 24 horas por dia e tenha mais alcance, é um investimento muito
grande".


Durante este ano, Gabriela foi um pouco a "faz
tudo" de Sepahua, em parte pela educação que recebeu antes e durante a
faculdade em Engenharia Mecânica. Isto incluía resolver todo o tipo de
problemas que fossem surgindo: arranjar antigos sistemas de água e
canalizações, sistemas eléctricos e  de iluminação; arranjar material e
pequenos trabalhos nas construções das casas (tudo é feito de madeira); dar
algum apoio técnico à rádio? até um telhado de folhas de bananeira reconstruiu.


Ao participar numa experiência tão única, o que não
faltam são histórias caricatas: um dia, Gabriela foi com a jornalista da Rádio
Sepahua à comunidade nativa de Bufeo Pozo (etnia Yine) em busca de notícias
sobre a nova escola que lá começaram a construir e sobre os projetos de
plantação de cacau que o governo estava a realizar na região. Apanharam o
"colectivo" (uma canoa comprida e alta, com capacidade para umas 40 pessoas),
chegaram de manhã, foram falar com o chefe da comunidade nativa e com as
pessoas que dariam as novidades, e, ao inicio da tarde, voltavam à beira-rio
para esperar o coletivo de volta. Passaram-se umas horas e não chegava?O tempo
apertou e perceberam que já não vinha nenhum. A preocupação assolou-as, pois
não conheciam ninguém suficientemente bem, e não tinham comida, roupa, nem como
ou onde dormir." É preciso perceber que nestes locais mais remotos não há nada:
cafés, restaurantes, hosteis, casas de banho"? Portanto fizeram o que
rapidamente se aprende a fazer entre indígenas: pedir ajuda. Após duas horas de
preocupação e medo pela noite que se aproximava, uma habitante a quem pediram
ajuda falou com mais dois ou três e resolveu todos os problemas: foram a casa
de uma família que vivia mais longe da comunidade tomar banho; jantaram e
dormiram em casa de outra família. Durante aquela noite foram tratadas e
cuidadas como filhas, como família, como um deles. Na manhã seguinte voltaram
sãs e salvas, a casa, sem nunca esquecer o lar que as protegeu aquela noite.


Por mais gratificante e incrível que seja conhecer
e passar a pertencer a uma sociedade completamente distinta da nossa, Gabriela
sentiu falta de coisas simples como poder carregar o telemóvel quando quisesse;
ter luz à noite, um sofá ou água quente; de comer legumes, leite ou um simples
expresso; ouvir português ou uma música que não fosse folcore peruano; dormir
até depois das 7h da manhã; sair uma noite; ter férias?até ter aulas!


Das coisas que mais valorizou nesta experiência foi
a cultura indígena: nenhum povo resistiu a tanto ataque e perigo de extinção
(de raça ou de cultura) como os indígenas da selva amazónica. Quase todos os
alunos do 12º ano em Sepahua querem continuar a estudar para serem professores,
enfermeiros ou condutores de trator; mas não querem ir para Lima por ser
demasiado diferente, confuso e sujo. "Todos, sem exceção, depois do curso,
voltarão para a selva para construírem as suas vidas. O nativo adapta-se à
realidade, mas mantém sempre a sua cultura intacta. Aproveita o que a
civilização lhe traz para melhorar a sua comunidade, a sua familia, e a vida
dos seus filhos, mas nunca se esquecerá daquilo que é realmente importante. Por
outro lado, valoriza imensamente o trabalho da Missão, e de forma mais
abrangente, a vida de serviço de centenas de missionários que desde que conhecem
a selva para lá vão, dar apoio a comunidades que por todos os outros são
ignoradas, inferiorizadas ou hostilizadas".


Apesar de neste momento planear viver o presente,
Gabriela quer conhecer outras realidades, como a da Índia, dos aborigenes na
Australia, do Médio Oriente ou até dos refugiados? É impossível prever, mas a
estudante tem a certeza de que o seu futuro - a longo prazo - terá como base
uma sociedade não marcada pela ocidentalização, onde possa desenvolver um
"trabalho significativo, provavelmente como engenheira, mais próximo da
essência do ser humano, e mais distante daquilo que a nossa civilização criou".


Se foi uma experiência que a mudou? Gabriela pensa
que uma pessoa não muda: "não mudei quem sou, mas mudei radicalmente a maneira
como vejo o mundo, as pessoas, e como vejo a vida.  Conhecer uma sociedade
tão nativa e tão pura abre-nos os olhos para outro estilo de vida. Ensina-nos a
redefinir as prioridades da vida, e o valor da nossa. No nosso mundo, nesta
"bolha" ocidental, vivemos muito longe da realidade originamente humana."
Gabriela acredita que no ocidente, insconscientemente, tomamos tudo por
garantido: eletricidade, emprego, transportes públicos? e ao mesmo tempo que o
tomamos por garantido, tomamos também por ?correto'. Esta viagem fê-la perceber
que não há apenas uma maneira correta para viver e ser feliz; cada povo tem a
sua! Os nativos são culturalmente um povo feliz: vivem no, do, e pelo presente,
pelo momento. Todos os que a essa comunidade pertencem, são acolhidos e
protegidos por ela. Ninguém sobrevive sozinho na selva, ninguém sobrevive
sozinho na vida - a vida existe para ser partilhada com outros. O "Eu" não é
importante, o crucial é o "Nós". E esta é a grande aprendizagem que traz
consigo: o ser humano sozinho e o sucesso individual não existem; a família e o
crescimento em comunidade são o que define uma vida compartilhada feliz.


Fonte: Portal de Notícias da U.Porto