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Conversas Sub 30: "O Porto tem a melhor programação cultural do país", garante Daniel Seabra

  • Paulo Alexandre Neves

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Guilherme Costa Oliveira

Natural do Porto, Daniel Seabra (n. 1993) é um dos mais importantes nomes da nova vaga do circo contemporâneo em Portugal. Apaixonou-se pela magia do circo em criança, e passou os anos seguintes a aprender como transformar em linguagem circense a ginástica acrobática que já praticava. Em 2010, com 16 anos, iniciou o seu percurso artístico no Chapitô, especializando-se em acrobacia aérea. Aluno de mérito durante três anos consecutivos, ganhou a bolsa Talento Nacional – BES 2013. Venceu a primeira edição do Prémio Jovens Artistas Coliseu Porto Ageas - Artes Circenses. Nunca mais parou de voar.

O que respondias quando te perguntavam, em criança, o que querias ser quando fosses grande?
Sempre tive uma vertente relacionada com o socorro. Dizia que queria ser nadador-salvador ou socorrista. Depois, com o passar do tempo, queria ser domador de golfinhos ou leões. Curiosamente, lembro-me que, para aí aos seis, sete anos, dizia também que queria ir para o circo e relacionar-me com animais. Percebi, logicamente, que isso não era bom. Mas também, desde muito novo, tinha na cabeça querer pertencer ao mundo do espetáculo, da performance. Lembro-me, em miúdo, brincar na piscina, fingindo fazer coreografias para os meus pais.

De onde nasce a paixão pelo circo?
A minha mãe tinha o hábito de me levar ao circo e eu não tinha vergonha de falar com os artistas. Lembro-me, uma vez, ter ido falar com uma senhora, que se chamava Nuria Mariani (na altura, ela trabalhava no Circo Cardinali), e lhe dizer: "gostei muito do teu número, mas as facas são a fingir, não são?". Achou de tal maneira piada que fui passar um dia com eles. E isso começou a ser recorrente. Normalmente, por causa dos animais. Até ao dia em que comecei a fazer ginástica e umas piruetas. A partir daí, a minha mãe percebeu que eu estava rendidíssimo ao circo e começou a fazer de táxi. Para onde eles fossem, nós também íamos, regressando a casa após cada fim de semana de espetáculos.

Foi com naturalidade, então, que receberam a tua decisão de ir estudar para o Chapitô?
Quando tomei essa decisão estava a acabar o secundário. Na altura, houve duas pessoas, agentes de mudança na minha vida: a minha treinadora de ginástica, Alina Queirós, a quem deve tudo, e a professora de teatro, Micaela Barbosa, que me incentivou a desistir do curso e ir para Lisboa. A minha família privou-se de muitas coisas para eu poder ir para lá. Largar uma criança de 15 anos para a capital é uma coisa quase bárbara. Lembro-me da minha mãe chorar muito até porque há uma precariedade muito associada ao circo. Nenhum pai imagina que o filho vá viver numa carrinha e ter uma vida nómada.

Estar pendurado era, realmente, o que mais curtia fazer

Não houve dias de arrependimento e o querer voltar para casa?
Todos (risos). De repente, passamos a viver uma realidade com que sempre sonhamos, mas que era distante. A escola decorria das 9h às 17h. Depois disso não tens o hábito de cozinhar, de viver sozinho ou de gerir uma casa com mais sete pessoas. Tínhamos dinâmicas muito diferentes. Mas, passado um ano, já não pensava nisso. Há sempre uma evolução, espaço para o crescimento. O ter vindo estudar para Lisboa fez-me crescer a diferentes níveis. Tenho prazer em conhecer pessoas, falar, ver diferentes realidades. Quando percebi onde estava e soube lidar com tudo isso, enfim, aprender a ser adulto à pressa, passei a adorar viver em Lisboa.

E depois do curso tirado, o que aconteceu?
Mesmo antes do final do curso tive uma espécie de esgotamento, gravíssimo, precisamente porque não sabia o que iria fazer. De repente, somos confrontados com a realidade: isto [o curso] acaba daqui a cinco meses e depois? Durante os três anos de curso, sempre estudei e trabalhei. No final, já estava a falar com os restaurantes, onde trabalhava aos fins de semana, para saber se poderia continuar. Ao mesmo tempo confrontava-me com a ideia de que não tinha tirado um curso para ir trabalhar num restaurante. Os meus pais tinham-se separado, a minha mãe desdobrava-se em mil e uma ações para eu poder estudar em Lisboa. Devo-lhes tudo. Todos os dias pensava: não posso falhar com eles. Fui aluno de mérito, durante os três anos, e, no final, recebi uma bolsa [Talento Nacional — BES 2013]. Quando acabei tive logo um contrato com a Disney on Ice. A partir daí, e porque sempre me interessei por psicologia e sociologia, fui trabalhar também com projetos de intervenção social ligados ao circo, nomeadamente, com o CASA-Centro de Apoio aos Sem-Abrigo, o Centro de Apoio à Paralisia Cerebral, o Armazém Aéreo, uma companhia de circo que tem um projeto com pessoas altistas, e com a Trupe Sénior, companhia só com idosos, que trabalha a mobilidade e a solidão. Tudo isto, em paralelo, já com os meus espetáculos.

Porquê a especialização em acrobacia aérea? E o que é isso de ser aerealista?
Um aerealista é um acrobata especializado em aéreos. Quanto à acrobacia aérea, no Chapitô é-se obrigado a passar por tudo. Percebi que estar pendurado era, realmente, o que mais curtia fazer. Gosto muito de explorar o limite do meu corpo, em diferentes sentidos. O facto de ter sido ginasta trouxe-me alguma facilidade e privilégio no processo. Por isso, comecei a focar-me no trapézio.

O que faço é claramente circo

Como defines, artisticamente, os teus números?
É giro utilizar essa palavra porque já não sinto que faça ‘números’. Há quatro anos comecei a focar-me mais em criar espetáculos e não números. Faço números quando trabalho para outras pessoas. Sou muito interessado por política e quero que os meus espetáculos sejam diferenciadores. O circo é uma linguagem tão recente, quando comparado com a dança ou o teatro, que está, neste momento, a viver a sua revolução ontológica, a crescer, a questionar-se. Ainda há pouco trabalho que seja politizado com o circo. Quero fazer parte dessa malta que vai gritar. Curiosamente, em recente entrevista diziam-me: ‘os seus espetáculos não têm a magia do circo’. É exatamente aí que quero estar. O que faço é claramente circo. Continuo a fazer a mesma técnica, mas posso pôr camadas nisso. É um privilégio estar num palco com pessoas a olhar para mim e poder-lhes mostrar a minha visão. É fenomenal. Quero reinventar o meu circo, que esteja num lugar de liberdade, que não tenha rótulos ou esteja agarrado à ideia de género, idade, peso. Quero romper com isso tudo.

Crisálida é o primeiro solo…
É o espetáculo mais especial que tenho. É sempre difícil falar dele sem me emocionar. Tenho tanto prazer em fazer isto… O Crisálida foi o momento de transição entre os números e os espetáculos. Foi o momento em que percebi que me dá um prazer especial passar por um processo que envolva muita gente. São 18 pessoas projetadas no meu corpo. Foi um processo inacreditável, tão rico para toda a gente que me orgulho tê-lo construído.

Ter ganho a bolsa Talento Nacional – BES 2013 foi importante para o início de carreira?
Na altura, as bolsas não tinham a visibilidade que hoje têm. Depois, era muito novo e não soube aproveitar isso.

Já faço parte da história do Coliseu

Diferente terá sido, com certeza, vencer a primeira edição do Prémio Jovens Artistas Coliseu Porto Ageas - Artes Circenses.
Cresci com famílias saltimbanco e todas, com quem me cruzei até agora, tem uma história e relação com o Coliseu do Porto. Toda a gente tem histórias inacreditáveis aqui com o circo. O título é fixe, mas tê-lo recebido na casa da história do circo nacional é impactante. É inacreditável porque me traz memórias muito felizes. Por exemplo, recebo um prémio e vem-me à memória a professora Carla Aida, que toda a gente conhece no circo português. Foi o que me aconteceu no dia em que recebi o prémio. Sentimo-nos tão confortáveis com aquilo que fazemos que nos esquecemos do passado. Momentos que me obrigaram a lembrar que, por exemplo, já vivi numa roulotte, com uma cobra. Já vivi em Macau, Angola… Nem me lembrava. O facto de o prémio ser do Coliseu, instituição com 81 anos de história, é fenomenal.

O Coliseu tem algo de especial para todos os profissionais. Porquê?
Por toda a história que carrega. Também já faço parte da história do Coliseu. Fiz aqui uma temporada, em 2020, inacreditável. Tudo por causa da pandemia. Tínhamos de gerir o calendário, semanalmente. Tenho histórias maravilhosas aqui e pena que as novas gerações não saibam também da história desta icónica casa de espetáculos da cidade. Quando o Coliseu está cheio é soberbo para quem está em cena.

Que recordações de infância do Porto?
De estar sempre a chover (risos) e de querer ir ver o Pai Natal em azulejo, que havia na Rua de Cedofeita. Já na juventude lembro-me de ver um espetáculo de circo no Teatro Helena Sá e Costa, que me marcou muito, por perceber que era vanguardista.

O que é o Porto para ti?
É a minha casa. O Porto tem a melhor programação cultural do país. Vivia em Lisboa e mudei-me para cá porque o Porto e a Cultura têm uma relação muito forte. Até os meus amigos vem aqui ver espetáculos porque lá não há a mesma oferta. Lisboa tem uma programação mais comercial. Aqui, é fácil comunicar com as companhias, os teatros. Há um lugar para a experimentação. Daí ter voltado às minhas raízes.