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Conversas Sub 30: “O Porto tem a feliz junção de ser uma cidade com pessoas do Norte”, sublinha a ilustradora Clara Não

  • Paulo Alexandre Neves

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Filipa Brito

Clara Silva assume que Clara Não, como se apresenta, é um “nome reivindicativo”. Ilustradora, licenciada em Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas Artes do Porto, e com Erasmus, em Roterdão (Países Baixos), reconhece: “o Porto é a minha casa”. Em 2019, publicou o seu primeiro livro “Miga, esquece lá isso! — Como transformar problemas em risadas de amor-próprio”, pela Ideias de Ler. Em 2022, foi nomeada para os prémios europeus About You. Nas horas vagas canta Britney Spears.

Porquê Clara Não?
A história é muito simples. Chamo-me Clara Silva. Um nome muito comum nas pesquisas online. Testei essas coisas e decidi trocar. Pensei: porque Não? Começou a fazer sentido. Sempre gostei muito de escrever e dá aquela confusão semântica: Clara Não vai, Clara Não faz. Depois fui ganhando mais coragem para falar em temas tabu e fez ainda mais sentido. É um nome reivindicativo.

Gostou sempre de escrever?
Desde muito pequena. Ganhei um prémio no 11º ano, num concurso da escola, com um diário, “Totó de uma Adolescente”. Lembro-me que fiquei muito escandalizada porque o prémio para mais de 18 anos era mil euros e na outra categoria, para menos de 18 anos, quem ganhasse levava uma impressora. Fiquei com a impressora, que, por sinal, durou muito tempo.

E ser ilustradora? É uma vocação mais recente?
Também gostei sempre muito de desenhar. A minha educadora de infância chegou a dizer à minha mãe que eu desenhava muito rápido, que depressa passava para outra folha, fazendo com que gastasse muito papel. Por causa disso, a minha mãe disse-me que só tinha dez folhas por dia para gastar. Passou-lhe rápido. Gostei sempre muito de desenhar e, lá está, contra a regra. Também tenho uma irmã mais velha, que tirou o curso de Arquitetura na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP). Já a vi muito crescida, a ser também crescida. Essas coisas influenciam. Por isso, as artes sempre estiveram na minha vida.

Não há pessoas como as do Norte

Na escrita, no desenho, o Porto inspira-a?
Mudou a minha vida. Em 2011, vim estudar para Belas Artes [vivia, na altura, em casa dos pais, em Grijó, Vila Nova de Gaia]. Sempre gostei muito de desenhar os edifícios mais do que as pessoas. A parte decorativa veio mais tarde. Não há pessoas como as do Norte. O Porto tem a feliz junção de ser uma cidade com pessoas do Norte. Não se encontra isso em lado nenhum. Coisas simples só acontecem cá, como emprestar, ou mesmo dar, o quer que seja. É uma união diferente entre as pessoas. Ajudam-se, insultam-se sem se conhecerem de lado nenhum. Faz parte da mesma química. É tudo muito emotivo. São estas coisas que fazem a diferença.

O seu percurso académico passa também por fazer Erasmus, em Roterdão (Países Baixos). Como foi essa experiência?
Foi a primeira vez que vivi mais independente. Foi lá que investiguei a parte de ilustração e de escrita criativa. Já lá troquei uma cadeira principal de design por ilustração. Foi muito desafiante porque só tinha tido meio ano de ilustração na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e eles, lá, tinham dois anos. Ainda para mais pensei que o professor não gostasse de mim porque estava sempre a colocar defeitos nos meus trabalhos. Só mais tarde percebi: tive as melhores notas da turma porque ele estava a puxar por mim. Ficámos de tal forma amigos que ele já veio ao Porto com a família. E gostou.

Como é o seu dia a dia?
Ou trabalho em casa ou vou para a Biblioteca Pública Municipal. Adoro bibliotecários, são essenciais. Fazem toda a diferença para, por exemplo, quando perguntamos saberem onde estão as coisas, sem serem máquinas. Aí faço muitas ilustrações, num ambiente calmo, sem o rebuliço da cidade. Tenho uma vida simples.

Não ganhei, mas diverti-me imenso [na gala dos About You Awards, em Milão]

Como nasceu o seu primeiro livro “Miga, esquece lá isso! — Como transformar problemas em risadas de amor-próprio” (Ideias de Ler, 2019)?
Se estivermos a falar de energia nasceu de manifestação. Se for pela vida normal nasceu por um convite do meu editor (Orlando Almeida, da Porto Editora). Só descobri que poderia ter sido por manifestação porque, na altura, encontrei um post it, muito antigo, onde se lia: ‘faz uma compilação das tuas ilustrações e manda à editora. Nunca se sabe’. Nessa altura, tinha feito uma grande exposição em Lisboa, sozinha, acabado de entregar o mestrado e ele mandou-me uma mensagem para uma reunião. Levei os meus cadernos pequenos e mostrei. Convidaram-me para fazer um protótipo. Foi tudo feito muito rápido. Tive a reunião em novembro e em março, do ano seguinte, o livro estava pronto.

Como define esse seu primeiro livro?
É uma espécie de anjo da guarda pagão, objeto de cabeceira. Tem duas modalidades de leitura: dá para abrir numa folha qualquer ou dividir por temas e lá dentro ter ilustrações com narrativas conceptuais.

Este ano, foi nomeada, na categoria de Empowerment, para os prémios europeus About You. Como recebeu essa notícia?
A minha agência informou-me que seria possível ser nomeada para os prémios europeus About You. Disse para comigo: ‘Não posso ficar entusiasmada porque se não acontecer é mau’. Despois, aconteceu ainda que fosse muito pouco provável ganhar na minha categoria. Não ganhei, mas diverti-me imenso e conheci pessoas muito interessantes. Algumas delas são minhas amigas.

[Os About You Awards concentram-se em personalidades relevantes, que utilizam o seu alcance para definir os impulsos significativos e impulsionar uma mudança sustentável. Portugal contava com cinco nomeados, nas categorias de Estilo (Sofia Coelho), Criação Digital (Hugo Suíssas), Empoderamento (Clara Não e Lucas With Strangers). Apesar das várias nomeações, apenas MoveMind (criador de conteúdo da FTW Esports) conseguiu trazer para casa o prémio, na categoria Live]

Não ganhou, mas é sinal de que o seu trabalho já não passa despercebido?
Verdade. Foi um choque. Só me apercebi disso mesmo quando tive, pela primeira vez, uma passadeira vermelha para desfilar e dar entrevistas.

Não gosto quando as pessoas olham muito e não me dizem olá

No seu curriculum diz que nas horas vagas canta Britney Spears. Porquê?
Cresci com ela. O primeiro CD que tive foi da Britney, oferecido pela minha irmã. Foi uma mulher que passou por muita coisa. Lembro-me de ser novinha, de a ver já famosa e pensar: ‘tenho de me despachar’ (risos).

Convive bem com a fama?
Não é problemático. Nunca me proibiu de fazer alguma coisa. Fico contente porque é sinal de que o meu trabalho está a ser reconhecido. Só não gosto quando as pessoas olham muito e não me dizem olá.

O que é o Porto para si?
Por muito que tenha vindo de um sítio e vá para outro, o Porto é a minha casa. Os meus amigos estão aqui. Gosto muito do conforto da cidade.

E um livro dedicado à cidade?
Já tenho um, o “Mapa do Bairro: guia literário da cidade” (Bairro dos Livros, 2018). Tem ilustrações minhas. É um livro muito curioso porque é como se fosse um mapa literário da cidade, com textos de Minês Castanheira. Ganhei muitas referências. Foi dos meus primeiros grandes trabalhos, aqui realizados. Enviei um exemplar ao presidente da Câmara, Rui Moreira.

Como encara o futuro?
Vou mudar para Lisboa, por razões profissionais, mas continuarei a manter casa aqui. As coisas estão muito centralizadas na capital, de tal forma que parece que não dá para crescer mais aqui. Não há mais nada que possa fazer aqui.