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Conversas Sub-30: “Já ponderei fazer um filme de animação baseado na arquitetura do Porto”, revela João Gonzalez

  • Paulo Alexandre Neves

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Filipa Brito

João Gonzalez nasceu no Porto, em 1996. Define-se como realizador, animador, ilustrador e músico, com formação clássica em piano. Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, fez o mestrado na Royal College of Art (Reino Unido) depois de terminar a licenciatura na Escola Superior de Media, Artes e Design (ESMAD) do Politécnico do Porto. Nestas duas instituições realizou os multipremiados filmes de animação “Nestor” e “The Voyager”, que, em conjunto, arrecadaram mais de 20 prémios nacionais e internacionais. "Ice Merchants" é a sua primeira obra profissional a ser também reconhecida internacionalmente, tornando-se no primeiro realizador português de animação a ser premiado no Festival de Cannes.

Como foi receber o prémio do júri para melhor curta-metragem da Semana da Crítica, do Festival de Cannes?
Com muita surpresa. Já em Cannes, ainda estava a processar o facto de o filme ter sido aceite em competição, numa das mais importantes secções competitivas paralelas do certame francês, quando isto aconteceu. A animação não costuma ter grande projeção no festival. É raro uma curta-metragem ser selecionada, quanto mais ganhar. Havia mais duas “curtas” em competição, muito boas por sinal, pelo que ganhar foi uma surpresa, mas também, naturalmente, muito gratificante.

É a primeira vez que um filme de animação português ganha um prémio em Cannes. Isto pode ser um impulso para o setor?
A animação portuguesa está a viver um período muito bom. Temos nomes fortíssimos – Regina Pessoa, Bando à Parte, Alexandre Siqueira, etc – que já foram, internacionalmente, reconhecidos. A Regina Pessoa já ganhou o Cristal da Curta-Metragem do Festival Internacional de Animação d`Annecy, em França (considerado o "Cannes" do cinema de animação). Não nos falta o reconhecimento internacional. Não sou, de todo, pioneiro. Sou só mais um que está a aproveitar o caminho desbravado pelos grandes nomes da animação nacional.

Sou só mais um que está a aproveitar o caminho desbravado pelos grandes nomes da animação nacional

A sua formação não começa pelo cinema…
Tive um percurso um bocado atípico. A minha base artística é a música e, em concreto, o piano. Comecei a tocar bastante cedo, já que o meu pai é professor de piano. No 3.º ciclo decidi ir para Ciências por causa dos meus colegas, que optaram, quase todos, por essa área. Mais tarde fui dar às Artes por duas razões: a primeira, porque queria tirar Geometria Descritiva, já que sempre equacionei tirar o curso de Arquitetura; a segunda, porque não consegui entrar em Engenharia Informática, que era a minha primeira opção quando acabei o ensino secundário. Acabei por ir para Artes um bocado por erro. O meu objetivo era tirar o curso de Artes Multimédia, na ESMAD, e preparar-me, depois, para concorrer para Engenharia Informática. Foi aí que tive a primeira experiência com a animação. Gostei tanto que decidi ficar no curso.

Realmente, um percurso atribulado.
(sorrisos) Entretanto, no segundo ano, voltei a tocar piano. Estudava 12 a 14 horas, descurando um bocado a faculdade. Já no terceiro ano somos desafiados a fazer um projeto final. Decidi experimentar a animação e desafiei-me também a compor a banda sonora em piano. Recordo-me que sempre que o filme [“The Voyager”, de 2017] era exibido em festivais perguntava se podia tocar, ao vivo, a banda sonora. Foi uma forma de me desafiar e perder o medo de tocar piano ao vivo. Percebi que me sentia muito mais completo ao juntar as duas áreas de formação e, desde então, faço isso.

Esta é a sua terceira curta-metragem. Todas elas já premiadas. A que se deve isso?
Tive sorte. Esta ["Ice Merchants"] é a minha primeira “curta” como profissional, com financiamento (de França e do Reino Unido e também o apoio do Instituto do Cinema e Audiovisual). As outras duas – “Nestor” e “The Voyager” – foram realizadas no contexto escolar. Neste caso, o custo foi o tempo.

Como é possível ser-se profissional numa área tão específica do cinema?
Dá para o sustento. Este é, ao mesmo tempo, um filme profissional, mas também de estudante do 2.º ano da Royal College of Art (Reino Unido). Decidi continuar a trabalhar nele depois de ter concluído o mestrado. Tudo aconteceu por causa da pandemia. A universidade decidiu que os alunos não tinham de acabar por completo os seus projetos para passar de ano. Isso permitiu-me terminar o filme em “animate” e “storyboard”, preparar toda a produção e concorrer ao financiamento do ICA.

Onde vai buscar a inspiração?
Os meus filmes partem sempre de imagens que me vêm à cabeça. Antes de adormecer, durante o dia, em sonhos, suscitadas por uma certa música, que, depois, desenvolvo durante os meses seguintes, através dos desenhos e da escrita. Modelo todo o espaço do filme em 3D. Isso permite-me, após dois meses de trabalho, criar um espaço que, na minha cabeça, já é quase físico. Dá-me ideias para a narrativa do filme. Ou seja, nunca sei, no começo, o que o filme vai ser. Costumo ouvir dizer: ‘tens de viajar para ganhar inspiração’. Faço isso de forma virtual. Normalmente, os tópicos acabam, depois, por ir ao encontro de coisas que me são pessoais. Por exemplo, as duas primeiras “curtas” são sobre distúrbios psicológicos. Esta já é mais emocional, não tão pessoal, mas vai sempre ao encontro dos temas da solidão, surrealismo, assuntos que me interessam.

Agora, em Portugal, estão a surgir mais cursos de animação

O "Ice Merchants" demorou muito a fazer?
Se contar os dias seguidos demorou à volta de um ano, o que é pouco para um filme de animação. Com as pausas e pandemia levou dois anos. A equipa de animação sou eu e outra pessoa (Ala Nunu, animadora polaca). Tivemos sorte com a equipa que trabalhou no projeto. Mesmo dois anos é pouco tempo para uma “curta” de 14 minutos.

O Porto alguma vez o inspirou?
Indiretamente, sim. Em termos de arquitetura. Gosto da verticalidade da cidade. Já ponderei, inclusive, fazer um filme de animação baseado na arquitetura do Porto. A arquitetura está sempre presente nos meus filmes.

O que é para si o Porto?
Pergunta complicada. Vivi sempre cá. Adoro. É um porto. Quando estudei em Londres e vinha cá tirava sempre um dia para andar sozinho pela cidade. Fazia-me de turista. É uma cidade que me inspira. Gosto muito de viajar, mas sempre com a ideia de voltar.

O nosso país não oferece oportunidades?
A primeira vez que ponderei ir estudar para o Reino Unido foi logo após o meu primeiro filme (“The Voyager”). Entrei no festival do British Film Institute e lembro-me que foi lá que me aconselharam a Royal College of Art. É, segundo os rankings, a universidade número um de artes do mundo. Tem muita procura e os professores são muito bons. Tive muita sorte em entrar. Agora, em Portugal, estão a surgir mais cursos de animação. Há uma grande procura, inclusive no ensino secundário. Por exemplo, na Escola Artística Soares dos Reis (Porto) há um curso profissional de animação. Quem me dera ter feito, no meu secundário, um quarto do que lá produzem.