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Conversas Sub 30: Irmãos Salvador e Vicente Gil destacam o Porto como "cidade acolhedora" e onde desejam "voltar sempre"

  • Paulo Alexandre Neves

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Andreia Merca

Salvador e Vicente Gil nasceram em março de 2001, no Porto. Irmãos gémeos optaram por seguir a mesma carreira artística ainda que com ligeiras diferenças: Salvador frequenta, neste momento, o último ano do curso de Cinema e Audiovisual na Escola Superior e Artística do Porto, Vicente optou por ser ator, tendo já alguma presença mediática em séries televisivas, como os "Morangos com Açúcar". Realçam que o gosto pelas artes lhes foi incutido pela mãe, também ela atriz e ativista da causa cigana, não esquecendo a formação superior na Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE). Os dois protagonistas desta "conversa" orgulham-se de pertencerem a uma etnia tantas vezes esquecida e ostracizada. Sabem-no e disso fazem também a sua luta diária por um Portugal de todos e para todos. À cidade do Porto, que conhecem como as palmas da mão, deixam os maiores elogios.

Em miúdos tinham os mesmos sonhos?
Vicente Gil (VG): Tínhamos sonhos muito parecidos, que se cruzavam uns com os outros. Agora, temos objetivos de criar filmes e espetáculos juntos.
Salvador Gil (SG): É mais uma questão de valores e princípios. Trabalhamos na mesma área e, por isso, tivemos sempre a mesma perspetiva.

O que respondiam quando vos perguntavam o que queriam ser quando fossem grandes?
VG: Não sei bem. Nem sei se tínhamos uma resposta exata. Tanto eu, como o Salvador, fomos descobrindo o teatro e o cinema, profissionalizando-nos nessas áreas. Talvez este seja o nosso lugar.
SG: Começamos, muito novos, a envolver-nos com o teatro. Aos 12 anos já íamos sozinhos assistir a peças, ir a exposições, museus. Não tínhamos, propriamente, uma resposta sobre o que queríamos ser no futuro. Lembro-me que queríamos fazer parte daquilo que víamos.

O interesse pela Cultura foi-vos incutido ou descobriram por vocês próprios?
VG: A nossa mãe sempre fez questão de nos culturalizar. Dar-nos acesso a espetáculos de teatro, dança, performances, exposições, circo, muita música, muito cinema. Fossem eles em salas convencionais ou na rua. Até já utilizaram a nossa casa para uma iniciativa cultural [n.r.: Festival Varandas, uma coprodução da Câmara Municipal do Porto, Associação das Colectividades do Porto (ACCP) e Plateia Paralela]. Sempre foi uma coisa natural nas nossas vidas. Era programa familiar consumir cultura.
SG: Para além da nossa mãe rodeamo-nos de pessoas que também nos incentivaram bastante para o conhecimento e cultura. Como sempre moramos no Porto aproveitámos tudo o que era possível: festivais, museus, com entradas gratuitas, etc.

Esta casa [Academia Contemporânea do Espetáculo] marca o início da nossa profissionalização

Escolheram a Academia Contemporânea do Espetáculo (ACE) do Porto para esta entrevista. Porquê?
VG:
Só quando vim para esta escola percebi que queria ser artista. Tirei o curso de interpretação e foi durante a nossa estadia aqui que nos cruzamos com a Leonor Teles [realizadora] e fizemos o nosso primeiro filme, ambos como atores [n.r.: "Cães que Ladram aos Pássaros"]. Esta casa marca o início da nossa profissionalização. Esta equipa é maravilhosa porque não só nos ensina coisas básicas como nos dá valores, um sentido de espírito crítico, uma vontade de agarrar o mundo, de agarrar a arte como um todo.
SG: Já fiz trabalhos atrás das câmaras, em partes mais técnicas, e o que aprendi nesta escola fez-me ter espírito crítico, olhar de uma forma diferente para as áreas estética e criativa.

No teu caso, Salvador, a orientação para a realização foi natural?
SG:
Dentro da Academia fui-me interessando pela criação de filmes. Dei-me bem e fiz a escolha certa. É por aí que vai a minha carreira. Éramos uma equipa forte e completa. Para além de colegas tornaram-se amigos para a vida. Por acaso, estive a trabalhar no filme da Leonor Teles, como assistente de produção, e ganhei logo esse bichinho.

E como foi contigo, Vicente?
VG:
Quando aqui entrei, pela primeira vez, era de uma timidez extrema, mas, rapidamente, senti-me confortável com a ideia de estar em cena e em palco, ainda sem saber exatamente o que isso significava. Ao longo do tempo, a experiência com a Leonor Teles e, depois, as minhas experiências de teatro com a Circolando fizeram-me perceber o que era esse lugar e, sem quase questionar, tornou-se automática a minha decisão. Fez-me levar também a estudar na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, e a querer profissionalizar-me. Mais do que ator sou genuinamente apaixonado por teatro. Aqui há um sentido de criação muito alargado e que pegou comigo.

Vicente, já te tornaste um ator conhecido, pela tua participação em projetos televisivos. Lidas bem com toda a exposição pública?
VG:
Sinceramente só me lembro que já tenho alguma exposição pública quando alguém me aborda na rua ou quando saio à noite, onde há público mais jovem, por exemplo, na Cordoaria. Aí lembro-me que já fiz um projeto de um grande mediatismo televisivo [n.r: Morangos com Açúcar", mas, no dia a dia, está tudo igual. Tem sido muito tranquilo.

Os valores da nossa cultura [cigana] ajudaram-nos bastante a ser artistas

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O facto de terem origens ciganas já vos causou algum entrave nas vossas vidas?
SG:
A esse nível, sempre fomos mais fortes do que qualquer tipo de obstáculos. Desde pequenos sempre tivemos que nos confrontar com isso. Em geral, a mentalidade sobre o assunto sempre nos levou a dar respostas no dia a dia. Nunca nos deixamos abalar com esse tipo de confrontos. Existiram, várias vezes, na escola básica, mas sempre conseguimos dar a volta.
VG: Costumo dizer que quem é artista vive numa redoma. No fim do dia, o meio artístico tende a ser mais tolerável, mais consciente, mais responsável, no sentido cívico, de pessoa para pessoa. Estamos rodeados de pessoas com sensibilidade gigantescas, onde não existe grande espaço para julgamento. No meio artístico, o julgamento é automaticamente questionado. Há sempre um movimento de construção e de progresso, em termos de pensamento.
Já sofremos violência direta, como bullying e segregação, mas, mais do que isso, o cigano tem sempre um target. Mesmo sendo um aluno responsável ou com excelentes notas havia sempre esse carimbo de ser “o cigano da turma” ou “estes são os ciganos da escola”. Havia sempre uma barreira que nos colocava distante dos restantes colegas da escola. À parte disso, temos tido uma mãe excelente, que nos muniu das armas necessárias para combater isso e, na realidade, não sinto qualquer tipo de complexo, apesar de termos tido bastantes experiências negativas. Até parece que nos ajudou a questionar sobre nós próprios, sobre a nossa origem, o mundo à nossa volta. Os valores da nossa cultura ajudaram-nos bastante a ser artistas. Há uma maneira de estar no mundo, por parte dos ciganos, que nos é passada, e uma relação de empatia, entreajuda e de comunhão, que, estranhamente, afeta os nossos modos de trabalho e as nossas aproximações. Fico muito feliz por isso.
SG: Temos uma outra sensibilidade, que é muito maior. Somos ciganos e artistas e temos de ser nós a dar as respostas sobre os problemas que existem à volta dos 'problemas dos ciganos'.

Como veem o Portugal de hoje?
VG:
(pausa) Somos de uma geração que sofreu com a Troika e, após isso, temos as guerras na Ucrânia, no Médio Oriente e, agora, o crescimento do fascismo e da direita radical em Portugal. É muito estranho que, de um ano para o outro, as coisas ganham tanta força e, de repente, se aceitam certos discursos. O que mais me assusta no mundo de hoje é esta ideia do radicalismo, desta liberdade de expressão de ódio nas redes sociais. Assusta-me saber que no ano em que estamos acontece com tanta veracidade como acontecia no passado. Por exemplo, dei uma entrevista ao Jornal de Notícias [em 2023], onde referia que era e sou cigano. Os comentários que apareceram no Facebook a essa publicação... nunca tinha tido a noção que esse ódio para com a comunidade cigana era tão massificado. Uma pessoa não cigana arranja com dificuldades ferramentas para conhecer a comunidade cigana, a sua história, os seus valores, que tradições têm e isso só converge para que exista, cada vez mais, distância, mais desconhecimento, estranheza. Tudo isso potencia discursos altamente perigosos e odiosos. Tem-se fechado os olhos ao perigo desses discursos. Espero que seja uma coisa cíclica.
SG: Estamos em 2024, olho para o Parlamento e fico um bocado magoado por ter 23 anos e o país estar tão dividido. Todos têm direito à liberdade de expressão, claramente, mas há discursos e opiniões de ódio que mexem com a nossa liberdade. Isto não é a 'república das bananas'. É uma vergonha estarmos em 2024 e sentirmos estas tensões nas redes sociais e na rua, durante à noite. É triste.

Acabamos de comemorar os 50 anos do 25 de Abril...
VG:
Um dos maiores problemas da sociedade portuguesa, eu próprio senti um pouco esse défice durante toda a carreira escolar, é o de não dar valor à História. Devia ser uma matriz base, como é, por exemplo, o Português, a Matemática ou a escolha de uma segunda língua. As sensibilidades dos povos devem-se há assunção da História e dos acontecimentos e para ter uma noção do que não querem repetir no futuro. Se temos uma camada jovem menos sensível e mais alheada é por uma questão de falta de saber da História. O que, neste momento, não se cumpre do 25 de Abril ou que se vê fragilizado é que as pessoas se esquecem rapidamente, desvirtuam valores muito rápido. Ao fim de 50 anos de liberdade existem discussões abertas sobre o significado e valor das comemorações quando deveria ser inata a qualquer cidadão português. Foi uma vitória coletiva. Somos fruto do que o 25 de Abril plantou. Não fosse isso e o mundo seria outro, o país seria outro. Ainda há muito caminho por fazer, quer para a liberdade e inclusão das comunidades ciganas como para toda a nossa liberdade.
SG: A Educação é a chave de um povo, mas a nossa comunidade é esquecida. Nunca se vê uma intervenção a favor da nossa comunidade. Existem outros grupos com uma grande força à volta deles, uma linha de apoio. Nunca se viu uma manifestação, real e pública, a favor dos ciganos. Não o 25 de Abril mas as pessoas que o fizeram esqueceram-se, claramente, dos ciganos.
VG: Aqui é que sentimos como é que a liberdade é muito frágil, apesar das construções belíssimas feitas ao longo destes anos. A questão das comunidades ciganas não é levada com sentido de seriedade e de urgência como outras questões, dentro do racismo, são. As comunidades ciganas existem em Portugal há cerca de 600 anos e ainda nos dias de hoje olham-nos como não portugueses. Aqui é que se percebe que algo de muito grave acontece. Somos portugueses e, por acaso, ciganos. Há esse parêntesis. Temos os mesmos direitos e deveres.
SG: Parece que tentam passar o problema para as pessoas.

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Tivemos sempre a felicidade de viver no centro da cidade

Que memórias têm do Porto?
SG:
Uiiii... Imensas. Lembro-me, por exemplo, das inaugurações na Rua Miguel Bombarda [Inaugurações Simultâneas]. Fomos sempre miúdos de rua. Apanhar o elétrico, agarrados atrás, dar saltos para o rio Douro, andar pelos jardins do Palácio de Cristal. Conheço o Porto quase como a palma da minha mão. Consigo ir daqui [da ACE, perto do Mercado do Bolhão] a Matosinhos, a pé, sem precisar de utilizar o telemóvel.
VG: Tivemos sempre a felicidade de viver no centro da cidade. Entre amigos discutimos isso: devemos ser das últimas crianças, jovens a ter esta ideia de vivenciar a cidade. Jogar à bola na rua, jogar às caçadas, apanhar o Elétrico para as praias da Foz, passear pela cidade. É uma ideia de casa. É assim que sempre a imagino. É muito especial o Porto nesse sentido.

A cidade evoluiu muito, em termos culturais?
VG:
Bastante. O Rivoli, que tinha uma programação mais pontual, de repente tornou-se foco de uma programação internacional que não fica atrás de ninguém. Mas há também o FITEI [Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica], o Festival de Marionetas, o Batalha, o Cinema Trindade. O "Cultura em Expansão" cria focos culturais nas franjas da cidade. Espero que continue a crescer nesse sentido. A nível teatral, o Porto precisa de criar um espaço para que os artistas consigam permanecer na cidade sem precisarem de migrar para Lisboa. Haver mais espaço para os artistas, com maior diversidade.
SG: Precisamos desses espaços para ter essas respostas. O teatro deve conquistar a população.

Voltar ao Porto é sempre…
VG:
Maravilhoso. Às vezes, se venho dois dias fico irritado (risos). Adoro Lisboa, mas esta ideia de conforto, este ar, clima, as casas, as pessoas. Fico deliciado.
SG: É a cidade mais linda do mundo. Também gosto muito de Lisboa, vou lá muitas vezes em trabalho, mas não há nada como a luz, o ambiente, toda a construção do Porto. É uma cidade gigante, mas que consegue, na minha vida, ser pequena e acolhedora.

O que é o Porto para vocês?
SG:
Uiiiiiii…. A minha alma é o Porto. Para além de ser casa é, a nível artístico, a minha construção pessoal, física. É a minha ponte para o resto da vida.
VG: É a cidade onde desejo voltar sempre, onde desejo criar a partir de… Se houvesse uma régua, o Porto é o início e mantém-se ao longo dela. Mesmo não estando estou sempre cá. Na realidade, o Porto é espaço de confronto, de realidade, de memória, de muita inspiração. No Porto, eu vou estar sempre.

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