Habitação

Comunicado sobre as medidas do Governo para a habitação: Entre a pulsão bolivariana perfumada e o voluntarismo liberal

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A 4 de abril de 2016, o primeiro-ministro anunciou um investimento público de 1,4 mil milhões de euros para a construção de 7500 casas com rendas acessíveis, através do Fundo de Estabilização Financeira. Ao fim de sete anos de inação, de propostas vãs, de promessas nunca concretizadas, de medidas legislativas inócuas, eis que o Governo, sem ouvir as autarquias, decidiu avocar, por confisco, a política de habitação.

Depois de ter obrigado os municípios a assumirem tarefas mal pagas em áreas em que há pouca experiência a nível autárquico – num processo a que só por ironia se chamou de “Descentralização” –, o Governo optou agora por estatizar todas as políticas na área da habitação, precisamente a política pública em que os municípios têm uma intervenção histórica e um saber acumulado assente na diversidade. Se é certo que as políticas públicas devem ser transversais, estas não podem, contudo, ignorar as assimetrias e as particularidades territoriais.

Retirando aos municípios os instrumentos de regulação que estes vinham assumindo, sobrepondo-se aos PDM aprovados democrática e localmente, o Governo passa a tudo definir sem qualquer auscultação. E como é tradição nos modelos centralistas, fá-lo beneficiando os municípios que nada fizeram em matéria de habitação e penalizando aqueles, como o Porto, desde há décadas têm uma política que, no caso desta cidade, permite ter, proporcionalmente, o maior parque de habitação pública (que abrange cerca de 13% da população residente) e, seguramente, um dos melhores em estado de conservação.

Não é muito relevante avaliar cada uma das medidas que o Governo anunciou, até porque não as conhecemos em concreto, mas não temos dúvidas de que o todo falhará, independentemente da bondade de uma ou outra parte. Aliás, alguns dos programas anunciados replicam medidas que temos vindo a aplicar com sucesso na cidade do Porto, como é o caso do “Porto com Sentido” e do “Porto Solidário”, mas o seu impacto será anulado por outras medidas que, ao transporem para os pequenos proprietários o ónus social que cabe ao Estado, irão provocar um ainda maior desinteresse dos privados em serem parceiros estratégicos do Estado.

Medidas como a extinção de uma atividade económica tão revelante como o Alojamento Local, o arrendamento forçado de propriedade privada e o congelamento das rendas em novos contratos minam o fator-chave essencial na relação público-privada: a confiança. Esse é mesmo o efeito negativo irreversível que este plano já criou: amedrontou e retirou confiança ao mercado privado, que representa a esmagadora proporção do investimento em habitação.

Veja-se o que se passou nos últimos sete anos na cidade do Porto: o Estado central, através do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), não foi capaz de construir uma única habitação social e não foi capaz de promover um só projeto de renda acessível. Enquanto isso, o Município do Porto conseguiu construir 211 habitações sociais, disponibilizou quase 2500 habitações em renda apoiada e 185 em renda acessível. Também durante estes sete anos, o parque habitacional do Estado, gerido pelo IHRU, não foi reabilitado. A Câmara Municipal do Porto investiu cerca de 150 milhões no seu parque de habitação social e conseguiu envolver o setor privado, construindo uma base de confiança que as sucessivas intervenções do Estado central sempre minaram.

Se, de facto, o Governo entende que chegou a hora de ser o Estado central a tudo fazer, acreditando que uma salada de frutas de medidas avulsas resolve o problema da habitação, ora confiscando direitos privados e desprotegendo os pequenos proprietários, ora garantindo-lhes benefícios fiscais a título de compensação; se entende que a descentralização não deve abranger a habitação; e se entende matar a reabilitação associada ao Alojamento Local, então deve ser consequente e deve confiscar o parque habitacional dos municípios, assumindo a sua gestão.

No caso do Porto, deve ter a coragem de nacionalizar a Domus Social e incorporar o seu parque no IHRU. De uma penada, poderá também resolver os problemas sociais e os constrangimentos urbanísticos que o Governo diz estarem na origem, por exemplo, do tráfico de droga. E, precarizando o Alojamento Local, que representa mais de 50% da oferta turística disponível , intervém de forma violenta num mercado que as cidades procuravam regular, o que irá destruir a indústria que mais contribui para a balança de pagamentos e que tem tido um impacto transversal na economia das cidades.

Pelo menos desde 2017, o Município do Porto estabeleceu como prioridade que o investimento na habitação se deve concentrar na resolução do problema do acesso da classe média à habitação condigna a preços acessíveis. Nem todas a forças políticas entenderam esta nossa opção. Verificamos pela atabalhoada urgência deste pacote que, afinal, tínhamos razão. E lembramos que, por diversas vezes, apelámos junto do Governo a que os projetos de habitação de renda acessível fossem enquadráveis no PRR, objetivo esse que só não foi alcançado porque o Governo decidiu que as verbas da habitação fossem condicionadas ao programa 1.º Direito, ou seja, aplicadas em projetos de renda condicionada e habitação social.

O Município do Porto não deixará de participar na discussão pública que o Governo anuncia, mas, antes de o fazer, irá envolver e auscultar a sociedade civil, convocando os seus conselhos municipais de Economia e de Turismo.

No entanto, acreditamos que o problema da habitação não se resolve perseguindo os senhorios – pequenos investidores, muitos deles –, congelando rendas ou forçando o arrendamento. Essas medidas apenas afastam os aforradores do investimento em habitação e provocam a degradação do parque habitacional das cidades, tal como se demonstrou durante o Estado Novo.

Como sempre dissemos, a solução passa por aumentar a oferta de habitação. Para isso, o Estado devia ter a capacidade de construir habitação pública e de atrair o investimento privado com medidas fiscais apropriadas, com a disponibilização de terrenos (o que tarda em fazer) e com medidas que garantam a estabilidade legislativa e reduzam o risco político.

Com esta nova veia intervencionista, a obsessão centralista exigiria pelo menos coerência. Uma coerência quiçá inatingível quando há uma pulsão bolivariana autodestrutiva, perfumada com um voluntarismo liberal de caráter fiscal.

Rui Moreira
Presidente da Câmara Municipal do Porto