Urbanismo

Arquiteto Nuno Valentim: “Não há maior reconhecimento arquitetónico do que ser convidado para recuperar o Bolhão”

  • Paulo Alexandre Neves

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Filipa Brito

Escolhido pelo presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, é o rosto visível da renovação do Mercado do Bolhão. O arquiteto Nuno Valentim não esquece que foi a “decisão política” que permitiu avançar com o projeto. Sempre no plural, reparte os louros por todos os que colaboraram na obra: a sua equipa de arquitetos, os responsáveis pelo Gabinete do Mercado e os engenheiros, tantas vezes esquecidos. Diz que esta é “uma obra que nos marca”, procurando respeitar muito o trabalho do arquiteto autor, mas também atualizando a sua natureza e ambição. “Gostaria de ser recordado como alguém que deu esse passo”, confessa.

Como recebeu o convite do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, para renovar o Bolhão?
Não é difícil recordá-lo. Foi no dia de anos da minha filha mais nova. Recebi-o com um misto de muita emoção e surpresa. Na altura, tinha 42 anos. Não há maior reconhecimento arquitetónico do que ser convidado para recuperar o Bolhão. Tive que digerir e habituar-me à ideia, responsabilidade, àquilo que implicava. Tinha noção que iria ser um processo longo, exigente, difícil. A responsabilidade era muito grande.

Mudou a sua vida?
De alguma maneira sim, porque as pessoas começaram a perguntar-me, quase diariamente, como estava a correr o projeto. O Bolhão tem um lugar muito especial no coração de todos os portuenses. Toda a gente tem uma história qualquer com este espaço. É impressionante. Por isso, havia toda uma responsabilidade em estar a mexer com algo muito íntimo, pessoal dos portuenses, muito mais que nas suas memórias coletivas.

Nos últimos anos, a sua vida passou a estar permanentemente aqui?
Protegi-me um bocadinho. Tenho uma equipa fantástica. Sou apenas mais um pedreiro no meio dos imensos pedreiros que aqui trabalharam. Tive a sorte de ter não só a minha equipa, mas também a que a Câmara Municipal montou para que a obra se realizasse. Isto foi um trabalho de muitas mãos, de muita colaboração. Há uma questão de fundo: sem a decisão política, a arquitetura não existe. Isto não teria acontecido. Em 2014 tivemos, e ainda temos, um Executivo, que, com muita coragem, decidiu recusar os projetos que vinham de trás e abrir uma nova possibilidade e perspetiva para o Bolhão. Era um modelo de mercado, uma visão arquitetónica e funcional, diferente de todos os projetos que nos antecederam.
Voltando à sua questão, faço parte desta equipa, a começar pela Câmara, pelo Gabinete do Mercado do Bolhão (GMB), que fez um trabalho extraordinário, a nível de diagnóstico das condições socioeconómicas das pessoas que aqui estavam, que calibrou o nosso projeto de forma decisiva. Uma palavra para a arquiteta Cátia Meirinhos, o Dr. Francisco Rocha Antunes, a toda a equipa do Gabinete, que vai continuar com o Bolhão nas mãos. Na minha própria equipa tive pessoas, como a arquiteta Rita Lima, Margarida Carvalho, Frederico Eça, também uma equipa de engenharia e consultores notável, que permitiu que isto acontecesse e que eu fizesse outras coisas para além do Bolhão.

Há um trabalho incrível de engenharia na modernização do mercado

Como foi esse trabalho entre equipas de arquitetura e engenharia?
Há uma certa injustiça em relação à engenharia porque grande parte do seu esforço não é visível. Grande parte das estruturas, infraestruturas, dos cuidados que foram tomados, a nível dos projetos das especialidades, não são visíveis. Pressentimos, mas não são propriamente visíveis. Há um trabalho incrível, de facto, de engenharia na modernização do mercado. As imagens de obra são impressionantes porque vemos a sobrecarga infraestrutural e estrutural a que o Bolhão teve de ser submetido para responder aos novos requisitos, mas também problemas que, no limite, nunca tinham sido resolvidos pelo projeto original. Por exemplo, nunca teve o problema das águas pluviais resolvido. Tinha assentamentos estruturais graves na ala sul, que tiveram de ser reforçados com cerca de 1400 micro estacas. Tivemos que criar uma cave logística no miolo do terrado, permitindo que o Bolhão responda às atuais exigências de logística e que possa competir com as grandes superfícies ou outro mercado. A interligação com o metro, o túnel que foi escavado para aceder à cave por uma outra rua é ‘um coelho tirado da cartola’... Tudo isto faz explodir o mercado na sua relação com a cidade, tornando-o verdadeiramente permeável, aberto, acessível. Nestes aspetos, a engenharia foi fundamental.

O que sentiu no primeiro dia que cá entrou depois de ter sido escolhido para reabilitar o mercado?
Há uma grande ironia pessoal. Também eu tenho a minha história com o Bolhão. O meu pai tinha o seu gabinete de engenharia na Rua do Bolhão; o meu primeiro ateliê foi numa sala do seu gabinete e o nosso primeiro nome, enquanto coletivo, foi “Arquitetos do Bolhão”. Foi algo premonitório. O meu dia-a-dia passava por aqui. Era um ritual habitual na minha vida.
Quando recebi este convite, o nosso olhar mudou porque a arquitetura depende muito do diagnóstico, da leitura, da interpretação que fazemos da realidade sobre a qual vamos operar.
Passei a estar focado no dia-a-dia dos vendedores, em que condições trabalhavam, que tipo de relações estabeleciam com os clientes, quantos eram, de onde é que vinham, como resolviam os problemas práticos de armazenamento e condicionamento dos seus produtos. Esse conhecimento sobre o edifício, mas também sobre as pessoas e as suas atividades, é fundamental para tomar decisões acertadas e ajustadas perante os problemas existentes.

[O Bolhão] estava numa degradação enorme, a roçar a indignidade

Como via, então, o Bolhão?
Estava numa condição muito difícil, numa degradação enorme, a roçar a indignidade. As condições em que os vendedores estavam não eram dignas da nossa cidade. Eles são uns heróis, uns resistentes. Mereceram todo o esforço que a Câmara fez, todo o apoio que lhes deu. Todo o investimento feito foi merecidíssimo. Termos cerca de 70 por cento dos antigos vendedores neste ‘novo’ Bolhão é notável e a Câmara deve orgulhar-se disso. Apesar das condições difíceis, reconhecemos a matéria que fundou e formou o mercado: os seus vendedores e os produtos frescos. É um edifício, que, apesar de muito adulterado e estragado com o tempo, tem uma escala, uma dimensão, uma materialidade, um desenho notáveis. Os arquitetos já não se deixam fascinar pela estética da patine, que atrai muitos fotógrafos amadores e turistas, pelo que alguma coisa tinha que ser feita. Há 30 anos que o Bolhão esperava por obras. O meu sentimento não era de perda, mas de grande otimismo em relação ao que aqui se poderia fazer. Acredito, profundamente, que é possível transformar na continuidade, sem perder identidade e caráter. O Prof. Fernando Távora utilizava a expressão ‘continuar, inovando’. Esse foi um ideal que nos perseguiu.

Quanto tempo durou a elaboração do projeto?
A estratégia, o caminho, a filosofia foram definidas em abril de 2015. Aliás, nunca me tinha acontecido isto, de uma forma tão radical: as fotomontagens tridimensionais apresentadas, ao público, nessa altura, têm um grau de aproximação à realidade absolutamente notável. Depois foi toda a complexidade deste exercício, as dúvidas que surgiram ao longo do processo (por exemplo, encontrar a forma certa de aceder à cave), a negociação e a alteração do projeto anterior com a Direção Geral do Património Cultural (DGPC) e a Direção Regional da Cultura do Norte (DRCN), o acerto do programa. Tudo isto fez com que o projeto demorasse dois anos. Depois, mais um ano de revisões e empreitada e mais um de formalidades. Até ao início da obra demorou cerca de quatro anos.

Durante todo este tempo quais as principais surpresas que encontrou?
Em obra, a surpresa maior foi constatarmos que o restauro dos pilares de ferro fundido que suportavam a galeria implicavam uma demolição maior do que estávamos à espera. Agarrado a isso veio o sistema construtivo da cave, que estava dificultado por essa questão. Tirando também o sobressalto da pandemia, que fez com que muito menos gente estivesse em obra e houvesse dificuldade no fornecimento de materiais, tive, sobretudo, reações positivas: das pessoas, das forças políticas em geral. Quando aqui chegava muitas vezes era surpreendido pelas nossas próprias decisões, no seu impacto e escala. A maior surpresa é voltar a ler o Bolhão nesta sua integridade, enquanto edifício praça, de origem francesa.

É muito impactante poder voltar a dar a conhecer o edifício na sua escala original

Quais as principais novidades na recuperação do Bolhão?
Por exemplo, a reposição da ardósia, que tinha desaparecido da cobertura. Ao contrário do que se antevê, a ardósia reflete a luz. O que aqui estava era uma tela preta, a imitar ardósia, que absorvia a luz. No interior do Bolhão, a luz é muito especial. Também quando suprimimos a cobertura da ponte central passamos a voltar a ler a praça original que o arquiteto António Correia da Silva [autor do projeto inicial do mercado] idealizou. É muito impactante poder voltar a dar a conhecer o edifício na sua escala original.

E o criptopórtico?
Andamos muito tempo a pensar como é que poderíamos dar a conhecer, a quem visite o Bolhão, o [terceiro] criptopórtico, de um viaduto que existia na Rua de Sá de Bandeira. História que se pode ler, num artigo científico notável, do Dr. David Ferreira [doutorado em História de Arte e colaborador da Direção Regional de Cultura do Norte], dedicado ao Bolhão [“Subsídios para a história do Mercado do Bolhão”]. No fundo, o criptopórtico leva-nos para a Praça do Bolhão que antecedeu a existência do edifício. Remete-nos para 1837-40, altura em que foi feita a praça, o viaduto e os criptopórticos. Hoje, podemos voltar a mostrar um deles. Deixamos uma grande janela no local para que o possam ver.

Este é um mercado com novas funcionalidades e ligações. De que forma elas se concretizaram?
Posso sintetizar, em três pontos, os grandes princípios do projeto: devolver identidade ao edifício do arquiteto António Correia da Silva e construído entre 1914 e 1920. Autenticidade que tinha sido perdida por força de adulterações várias e da degradação e sobreposição a que esteve sujeito. Depois, reabrir, reforçar e alargar a permeabilidade, a relação com a cidade, a acessibilidade, a circulação. O edifício não poderia continuar a estar relacionado com a cidade apenas pelas suas quatro portas. Tínhamos de implementar essa relação de todas as formas possíveis. Terceiro ponto modernizar o mercado quotidiano de frescos, que é muito diferente de ser de levante (funciona uma vez por semana). Pôr a competi-lo com qualquer grande superfície, tranquilizando os compradores quanto à origem, higiene e grande conforto.


A Câmara estava em absoluta sintonia relativamente à questão da relação com a cidade. Por isso, é que o Bolhão passou de quatro para seis portas. A quinta é a da relação com o metro, que o arquiteto Eduardo Souto Moura já tinha antecipado quando projetou a estação do Bolhão, e a sexta, do túnel de acesso à cave logística, que vai permitir que todas as outras fiquem libertas do constrangimento das cargas e descargas e de circulação. O incremento de portas é o ponto-chave.
Outro grande sinal de abertura é a transparência que o edifício ganhou. Os vidros eram martelados, opacos, cheios de mobiliário. Neste momento, olhamos e vemos a transparência que o mercado tem. Isso sente-se muito no interior.
Em termos de acessibilidades passamos de zero para dez elevadores, muito diferenciados: para o público em geral, de serviço, monta-cargas. É bom recordar que era muito difícil a circulação para pessoas de mobilidade condicionada. Para além da circulação horizontal com a cidade, que foi reforçada, vai ser criada uma circulação vertical, que, inexplicavelmente, não existia. Por exemplo, foi criada uma nova caixa de escada na porta sul.

Globalmente, estou muito satisfeito com o resultado final

Os arquitetos são sempre pessoas insatisfeitas. Hoje alteraria alguma coisa no projeto?
Nas grandes decisões não. Nos pequenos detalhes haveria um ou outro que poderia ter feito diferente, mas nada que comprometa a estratégia e os grandes princípios da obra. Globalmente, estou muito satisfeito com o resultado final. Estou ansioso por ver o mercado a funcionar. Sozinha, a arquitetura ajuda, mas não faz milagres. O que todos esperamos é que as pessoas venham comprar, adiram ao mercado.

Hoje, oito anos depois, o que sente quando cá entra?
Um nervoso miudinho por causa da abertura. Sofro e sinto também aquilo que possa, eventualmente, não estar tão bem resolvido e que impeça os comerciantes de estarem bem. A equipa do Gabinete do Mercado está a fazer um trabalho notável para atender aos seus pedidos. Eles são muito exigentes, tal como os portuenses. Uma boa exigência que nos faz a todos crescer.

Recentemente disse que esta é uma “transformação na continuidade, uma atualização sem deixar de reconhecer a alma da cidade, que é o Bolhão”. Dever cumprido?
Sim, mas só fica cumprido se, de facto, existir adesão, se resultar enquanto mercado de frescos. Já está outra fase em curso, o da manutenção.

Gostaria de ser lembrado como alguém que ajudou a fazer a transformação na continuidade

Vai ser um frequentador habitual do Bolhão?
Espero que sim. Eu, tal como muitos portuenses, vou ter de me reajustar a novos hábitos e lógicas de consumo. Duvido muito daquela frase: ‘nunca regresses aos sítios onde foste feliz’. Tendo sido muito feliz nesta circunstância tenciono continuar a voltar aqui.

Como gostaria de ser recordado daqui a muitos anos, relativamente a esta obra?
Ui… pergunta difícil. Como alguém que ajudou e contribuiu para devolver à cidade um edifício notável, de um outro arquiteto notável. No fundo, alguém que terá ajudado a cumprir e a prolongar o seu desígnio, enquanto edifício de serviço à cidade, de equipamento público. Os mercados são, de facto, parte da alma das cidades. Gostaria de ser lembrado como alguém que ajudou a fazer a transformação na continuidade, a modernização e reforço da própria identidade do edifício. Que, no limite, juntou mais uns desenhos aos originais, procurando respeitar muito o trabalho do arquiteto autor, mas também atualizando a sua natureza e ambição. Fazendo com a expressão certa, ajustada, sem me colocar em bicos de pé, mas também não me escondendo no mimetismo ou conservadorismo restaurador. Nada disso. Não há, neste exercício, falsas humildades. É um exercício de transformação e melhorias. Não haja dúvidas. Gostaria de ser recordado como alguém que deu esse passo. Não se limitou, preguiçosamente, a restaurar, nem a rebentar, transformar e demolir o que aqui estava, mas alguém que procurou, com bom senso, responder a um desafio político, tomando conhecimento do edifício e circunstâncias existentes para essa transformação.

Esta é a obra da sua vida?
(longa pausa) Tenho três filhos que também são obras importantes, uma família que me apoia neste processo. Esta é uma obra que nos marca, mas acredito, sinceramente, que é do conjunto das obras que vamos produzindo que vem estes convites. Esta obra só é possível porque reabilitei a Casa Andresen, no Jardim Botânico, projetei a cobertura do Palácio da Bolsa, etc. Esta é, em parte, uma das grandes obras da minha vida, mas espero ainda vir a ter obra, contributo, arte, sonho, para a minha cidade, o meu país. Sobretudo, para melhorar as condições de vida das pessoas. É isso que nos move, enquanto arquitetos. Não é propriamente andar a deixar ‘statments’ arquitetónicas pela cidade. Esta é uma oportunidade muito singular. Não há muitas obras em que uma pessoa possa mexer no lado material e imaterial como no Bolhão. E, depois, ver isso a acontecer na prática, a partir do dia 15 de setembro.

Bolhão de sempre?
Bolhão de sempre, para sempre.