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Amigos plantam as saudades para eternizar o "absoluto e irrepetível" Manuel António Pina

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“Para quê tudo isto?”, poderia, assim, como lhe era tão típico, reagir Manuel António Pina à homenagem que família, amigos e admiradores das suas palavras “plantaram”, na tarde de sábado, nos Jardins do Palácio de Cristal. Para eternizar as memórias e as palavras, a Feira do Livro do Porto assistiu à atribuição de uma tília ao escritor que, este ano, norteia a programação do festival.

“Amável, bem-humorado, erudito e grande conversador, o Manuel António tinha o dom de tocar as pessoas. Era de facto um homem muito especial, verdadeiramente singular e cativante”. Assim o descreveu o presidente da Câmara do Porto, num momento que considerou “um encontro de amigos com eternas saudades”.

E são muitas: “do modo afável e caloroso como se relacionava connosco, do contagiante entusiasmo que emprestava a todas as facetas da vida, da sua infinita erudição e desassossego intelectual, do seu fino humor, da sua afiada ironia, da sua saudável matreirice”, recorda Rui Moreira.

Quem fica refugia-se na “escrita enleante, sensível e inventiva” de “um dos maiores nomes da literatura portuguesa”, uma escrita que, acredita o presidente da Câmara do Porto, “permanece ilesa à voragem do tempo e aos inevitáveis modismos culturais”.

A atribuição da tília de homenagem a Manuel António Pina, a décima naquela avenida dos Jardins do Palácio de Cristal, ao lado das filhas do poeta é, assim, uma forma mais de “imortalizar Manuel António Pina na cidade que o adotou e onde iluminou muitas vidas com a sua amizade, a sua escrita e o seu exemplo cívico” e que dele “ficou órfã”.

“Há cidades que nos ficam justas, e há cidades que nos ficam grandes, e outras que nos ficam muito apertadas, como se fossem uma roupa que não nos pertencesse. O Porto está-me justo, está à minha medida”, escreveu Manuel António Pina.

Certo de que o escritor “iria gostar desta homenagem num local tão simbólico do Porto e num evento que celebra os livros, a cultura e a própria vida”, Rui Moreira partilhou a esperança de que a iniciativa da Feira do Livro “contribua para manter viva a memória de Manuel António Pina, promovendo o conhecimento e a fruição da sua prodigiosa obra, sobretudo entre as novas gerações”.

Em edições anteriores, Ana Luísa Amaral, Júlio Dinis, Leonor de Almeida, Eduardo Lourenço ou José Mário Branco foram, também, perpetuados com uma tília na avenida.

Durante muitos anos, os novos leitores de Pina terão um sítio à sombra do qual pousar a cabeça, acarinhados pelas suas palavras:

“Quando eu me calar sabei que estarei diante de uma coisa imensa. E que esta é a minha voz, o que no fundo de isto se escuta”.

Fala-se de mais do absoluto e irrepetível Manuel António Pina (inclusive cala-se)

A homenagem a Manuel António Pina fez-se, igualmente, de memórias e mistérios e, destes, chega-se sempre às histórias. No auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, Rui Lage deu início à viagem pel’A Presença do Mistério, o ensaio sobre a poesia de Pina, do qual é autor, não sem antes se referir “àquela tília absoluta e irrepetível” que agora ficará “ligada ao absoluto e irrepetível Manuel António Pina”, pegando nas palavras do poeta para falar sobre as árvores, e "cada um de nós".

“Se esta homenagem acontece com este alcance, é porque é o momento certo”, sublinha o comissário da homenagem da Feira do Livro, citando Pina, “neste preciso tempo, neste preciso lugar”.

Na “poesia misteriosa, da dúvida, da suspeição” e no autor, apaixonado pela astronomia e a física de partículas, pelos saberes que “põem a linguagem em crise” que, dizia, “nos confrontam com o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, nos põem frente a frente com o desconhecido, o insondável”, Rui Lage acredita que “o que realmente importa não é o que se conhece, nem sequer é o que se desconhece, mas o que não se pode conhecer”.

“Manuel António Pina já não vive nem está morto”, sublinha o comissário da homenagem, “a sua morte é sabida em nós, é um assunto nosso e, portanto, cabe-nos fazer com que o Pina continue a andar por aí, nascendo-se, ele que dizia que se nasceu no Porto”.

De entre todas as palavras: bondade

Pela tarde dentro, entre amigos se falou de um amigo, na conversa “Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se)". Helena Teixeira da Silva partilhou a certeza de que “enquanto houver uma pessoa que não conheça o Pina, não tenha lido um poema dele, estes eventos são sempre de menos”. “Temos o dever de o partilhar, a bem dos outros”, acredita a jornalista.

Renato Soeiro recordou o Pina “publicitário com saudade da poesia”, que escrevia com humor para vender até sapatos e é autor do conhecido slogan do serviço nacional de emergência “O primeiro gesto é seu”, enquanto Sousa Dias não hesitou em classificá-lo como “um poeta que não teve evolução, já nasceu em plena maturidade poética”. “A poesia de Pina é a máxima do dizer aquilo que não pode ser dito”, acredita o professor de filosofia.

Sempre com mais histórias a cada dia, Germano Silva trouxe várias demonstrações do amor do amigo pelas palavras, ele que “foi revisor de dicionários”, por isso as conhecia tão bem. “Ele gostava de brincar com as palavras e tudo o que fazia, fazia com muita perfeição. Ele sabia que estava a fazer uma coisa bela”, partilha o historiador.

Para lá da febre sportinguista, de quem Germano Silva mais se recorda é do “homem bondoso” que faltava a homenagens - por esquecimento, também - para levar uma pessoa em situação de sem-abrigo a jantar. Assim era - assim é - Manuel António Pina.

Até 12 de janeiro, a Biblioteca Municipal Almeida Garrett é a casa-abrigo de uma das mais fortes amizades do homenageado desta edição da Feira do Livro do Porto. “Pina Germano” é a exposição das memórias, das epístolas, das fotografias, das pinturas, dos desenhos e de alguns documentos inéditos, testemunhas da amizade-amor-companheirismo-aventura que, durante largos anos, uniu Manuel António Pina e Germano Silva.

“Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma, é apenas um pouco tarde”. Nunca tarde para a homenagem, para a amizade. Sempre um pouco tarde para as saudades.