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Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez: “A nossa preocupação foi manter o Batalha o mais parecido possível”

  • Paulo Alexandre Neves

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Longe vão os tempos em que passavam os seus domingos de manhã nas sessões do Cineclube do Porto. A ligação sentimental ao lugar não prejudicou o trabalho, bem pelo contrário. Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez, do Atelier 15 Arquitetura, confessam que a restauração do Batalha Centro de Cinema, cujas portas (re)abrem esta sexta-feira, foi “um desafio”. “Queríamos trazê-lo para a contemporaneidade e conseguimos”, sublinham. Respeitando a identidade do espaço, inaugurado em 1947, com a assinatura do arquiteto Artur Andrade, revelam que a descoberta dos frescos de Júlio Pomar foi o momento mais emocionante de toda a obra.

Quais as sensações que tiveram quando, após saberem que tinham este projeto em mãos, vieram, pela primeira vez, ao Batalha?
Alexandre Alves Costa (AAC): Provavelmente tivemos reações diferentes. Para mim foi muito emocionante saber que ia ter oportunidade de trabalhar dentro deste edifício. Um espaço altamente significativo para a cidade, para os portuenses e, particularmente, para a minha própria família. Passei aqui a minha infância. O meu pai [Henrique Alves Costa] era crítico de cinema e dirigente do Cineclube do Porto, tal como o dr. Neves Real [professor universitário e cinéfilo, neto de Manuel Silva Neves, cofundador da empresa cinematográfica Neves & Pascaud, família que geria o cinema], que tratava da programação do Batalha. Aos domingos de manhã, o espaço era emprestado ao Cineclube para passar os seus filmes e eu estive sempre envolvido nisso. Não só pelo significado que o edifício tem – ícone da cidade, da modernidade, da contemporaneidade, da resistência antifascista, etc. – de uma certa emoção, por razões de cidadania, mas também por questões mais pessoais, como a minha própria relação com o edifício. Quando nos entregaram este trabalho pensei que isto era o trabalho da minha vida.
Sérgio Fernandez (SF): Estou também ligado ao cinema, tal como a minha geração. Vinha cá às sessões, desde os meus 11, 12 anos, e, depois, com o Cineclube, invariavelmente, todos os domingos…
AAC: Era a nossa missa.
SF: Casualmente, o arquiteto Artur Andrade [que projetou o novo edifício para o Batalha] era amigo do meu pai. Este cinema representava tudo aquilo que deveria ser a arquitetura: moderna, limpa, aberta, ao contrário do que o regime impunha e que depois veio a verificar-se, ainda com mais força, com os frescos do Júlio Pomar. Ficamos muitíssimo satisfeitos por poder reabilitar o espaço, que estava muito degradado, alterado, num estado inqualificável. Foi uma oportunidade fantástica de fazer algo pela cidade.

Nunca se arrependeram face ao estado em que se encontrava o edifício?
SF: O facto de nos identificarmos muito com ele deu-nos uma responsabilidade acrescida.
AAC: Quando olhamos para o edifício, como quem vai intervir, achámos que estava melhor do que realmente se encontrava. Estava muito pior do que pensávamos. Por outro lado, não tínhamos ideia que o que o dono da obra [Câmara Municipal] iria propor era mais denso do que pensávamos. Não sabíamos que íamos ter as dificuldades que tivemos que resolver. Por exemplo, acrescentar uma biblioteca, zonas de trabalho, coisas que não existiam. Não tínhamos a consciência de que íamos ter esse trabalho. Hoje, pensamos que não foi um aspeto negativo.

Foi um desafio.
AAC: Um desafio, um enriquecimento. Foi, no fundo, pegar naquilo que sabíamos que era o Batalha e trazê-lo para a contemporaneidade. Aumentou a nossa responsabilidade. Meter um programa que não existia, tentar fazer as coisas sem estragar o que cá estava, isso foi o nosso maior desafio.

Não foi difícil encontrar um consenso nesta obra

Que dificuldades encontraram?
SF: Como o meu colega já disse, o programa que tivemos de cumprir, mas também as dificuldades que nos trouxeram alguma satisfação. Havia a Sala Bebé, que tinha eliminado o salão de chá e repusemo-lo. O salão de chá era uma espécie de ponto de encontro da cidade da nossa geração. O programa obrigava também a ter um estúdio, além da sala de cinema. Criámo-lo, dando também uma dimensão mais correta à sala principal, ao mesmo tempo que pretendíamos, como já disse, reabilitar o salão de chá. Outras dificuldades foram aquelas que adivinhávamos: tudo muito estragado, tetos furados, abertos, contraplacados podres. A acrescentar a isso tudo constatamos que havia elementos estruturais podres. Por exemplo, na plateia, não sei como as pessoas não vieram parar à cave com as palmas. O chão da plateia e do átrio estavam completamente podres. Teve de ser tudo refeito. Foi uma surpresa. Outra questão complicada: se as pessoas do nosso tempo chegarem aqui e disserem que está igual, achamos que cumprimos a nossa missão. Mas, de facto, não está igual. Tem uma data de dispositivos que a legislação obriga e que não existiam naquela altura, como sejam, o elevador, o tratamento sonoro, acústico e térmico, etc. Tudo isso está bastante alterado, mas a nossa preocupação era manter o caráter que o edifício tem, porque é uma peça de arquitetura notável.

As vossas vidas alteraram-se muito com este projeto?
SF: Sim, embora o nosso trabalho seja este. Requereu uma permanência muito grande na obra. Uma permanência, e não me canso de o dizer, em que fomos, invulgarmente, ajudados, porque isto não é o normal. A equipa projetista, os donos da obra, a fiscalização, todo e qualquer trabalhador foram, durante a obra, de uma conivência permanente. Isso também nos deu, por um lado, alívio no trabalho, mas também uma vontade de contato direto. Passamos aqui muitos dias. Isso tudo se reflete no resultado. Foi uma cooperação perfeita do princípio ao fim.
AAC: Pessoalmente, a minha vida não foi alterada por causa disto. Foi bastante emocionante trabalhar aqui, mas quando penso, às vezes, noutros projetos que temos tido acaba por ser a mesma coisa. Os arquitetos assumem, de tal maneira, o trabalho que estão a fazer que é como se fosse seu. Estamos, neste momento, a restaurar um convento em ruínas que tem os mesmos problemas que este edifício. Claro que isto foi muito mais difícil do que aparenta aqui estar. Se vissem o que era isto….
SF: A nossa preocupação foi, de facto, manter o Batalha o mais parecido possível.
AAC: A questão da mobilidade também foi importante e um problema. Usava-se muito os degraus, pequenos desníveis, etc. Hoje em dia, os degraus têm de ter uma rampa e, às vezes, é muito difícil projetá-la quando o espaço nunca foi pensado para isso. Houve muitas dificuldades.

Trabalham juntos há muitos anos. Por algum momento, um ou outro pormenor vos fez discordar um do outro?
SF: Discutimos muito. Sempre. Um projeto é um processo em evolução. Há ideias, ponderação. Este era tão marcante que era difícil discordarmos.
AAC: Na essência, nunca discordámos. Houve um grande consenso, não só entre nós os dois como com outras pessoas que trabalham no atelier. Por exemplo, o Miguel Ribeiro trabalhou connosco durante todo este tempo e tivemos sempre em consenso. Não foi difícil encontrar um consenso nesta obra porque era tão óbvio que não havia muitas alternativas. O essencial era manter e conseguir encaixar o programa que o dono da obra nos exigia.
SF: Em boa verdade exigia, mas nunca nos impôs. Sempre puseram à nossa consideração a viabilidade dos processos.
AAC: Verdade. Se disséssemos que era impossível, é porque era mesmo impossível. Fizemos um grande esforço porque era uma mais-valia para o espaço, com outras valências mais contemporâneas. Isto era um puro cinema. As pessoas vinham ver um filme e iam embora. Os intervalos eram uma instituição, coisa que agora não existe. Agora, este programa implica a possibilidade de alguma permanência, desde a biblioteca ao salão de chá. Queríamos trazer o Batalha para a contemporaneidade e conseguimos.

Todos nos emocionamos [com a descoberta dos frescos de Júlio Pomar]

Principais alterações que tiveram de idealizar.
SF: A principal foi a garantia da mobilidade, com a inclusão de um elevador, que não existia. Retirar a Sala Bebé e repor, o mais fidedignamente possível, o salão de chá, que, agora, passará a ser uma sala polivalente. A sala principal prolongava-se num segundo balcão, muito profundo e com má visibilidade para o cinema. Aproveitamos isso para fazer um cinema estúdio, previsto no programa. Estas são as coisas que se veem. Depois, há muitas outras, que não se veem, que estão por aí distribuídas.
AAC: Há uma fundamental: o restauro dos frescos de Júlio Pomar. Foi muito emocionante. Toda a gente achava que não estava lá nada. Há uns anos, uns técnicos, indicados pelo Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR), vieram aqui, fizeram umas pesquisas e não encontraram nada….
SF: Não encontraram nada porque furaram tudo até à parede de granito.
AAC: Depois verificou-se que, de facto, existiam. Foi uma emoção. Desde os operários aos restauradores, todos nos emocionamos. Afinal, existem. Era preciso saber em que estado estavam. Apareceram, ganharam forma. E, ao contrário do que pensávamos, do ponto de vista do espaço, este ganhou imenso com a existência dos frescos. O foyer acabava numa parede branca e, agora, prolongou-se. Ganhou uma fluidez e profundidade que não tinha.

Nas vossas visitas, enquanto crianças, lembram-se, de alguma vez, terem visto os frescos?
AAC: Nunca vi. O meu pai, talvez, tenha visto. Ele escreveu sobre isso, num livro sobre os antigos cinemas do Porto, e disse que ‘parece que…’. Nunca falou em picado. Disse que tinham sido cobertos e uma segunda vez. Ele achava que a segunda demão – e foram sete – tivesse deteriorado, definitivamente, os frescos. Mas nesse livro, ele publicou uma fotografia dos frescos, dos que estão na entrada. Por exemplo, eu não sabia que, em cima, também havia frescos.
SF: Se vimos não nos lembramos.
AAC: Somos velhos, mas nem tanto….

Esta é a obra das vossas vidas, no Porto?
AAC: É, pelo significado que tem. Temos outras, por exemplo, a reabilitação da Escola Secundária Alexandre Herculano. É um projeto maravilhoso, do arquiteto Marques da Silva, onde tivemos o mesmo tipo de problemas. Isto é, não alterar o conceito essencial do trabalho. Restaurar aquilo que fosse possível. E também nos apaixonamos por essa obra. Já não sei o que é mais importante. Temos a Capela de S. Miguel-o-Anjo que, para mim, tem a maior importância.
SF: A importância não se mede pela quantidade. Temos a mesma dedicação relativamente a todas as obras. Claro que uma obra como esta obriga a uma permanência, um acompanhamento que, uma menor, não exige. Não classificamos as obras pela categoria.

Agora, temos o Batalha outra vez nosso

A saga do futuro do Batalha acaba.
SF: A ruína do Batalha foi sendo anunciada, especialmente quando introduziram outras funções. Ficou um pandemónio. Nunca mais entrei aqui até nos entregarem o projeto. Quando entramos mesmo, o estado de degradação física do edifício era terrível. Foi de surpresa em surpresa. Agora, temos o Batalha outra vez nosso.
AAC: Já está. Não acredito que haja qualquer evolução no país que leve a abandonar, outra vez, este espaço, tal como ele está reabilitado e equipado. É do melhor que existe. Não acredito, nem pensar que algum dia isto vai ser, outra vez, abandonado. Nunca mais.

Já pensaram que é um legado que deixam à cidade?
SF: Isso preocupa-me muito pouco…
AAC: O legado é, fundamentalmente, do arquiteto Artur Andrade, que fez este cinema. Não queremos nenhuma honraria em relação a isso. Não é muito o nosso estilo.
SF: É uma peça marcante na arquitetura contemporânea portuguesa. Tem autor, que teve a coragem de fazer esta obra, numa altura em que não era praticamente consentido.
AAC: É evidente que as pessoas estão expetantes. Acho que não estragamos. Isso dá-nos alguma satisfação.

Vão ser frequentadores do novo Batalha Centro de Cinema?
AAC: Se a programação tiver a qualidade que já se anunciou temos obrigação…
SF: …mais do que obrigação, vontade.
AAC: Não digo que venha para cá ler livros, mas ver umas sessões de cinema, sim, de certeza.