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Uma das últimas grandes entrevistas de Pedro Baptista foi ao Jornal Porto.

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A propósito do arranque das comemorações dos 200 anos da Revolução Liberal do Porto, o Jornal Porto. entrevistou o comissário geral Pedro Baptista, deputado municipal independente que morreu esta manhã de forma repentina. A 9.ª edição da publicação começa precisamente hoje a ser distribuída,

no dia em que inaugura a exposição "1820.Revolução Liberal no Porto". Aqui fica reproduzida, na íntegra, uma das últimas entrevistas a Pedro Baptista. Pela sua morte, Rui Moreira decretou um dia de luto municipal, a respeitar amanhã, sexta-feira.

Em 1971, fundou o único partido político que a cidade do Porto viu nascer até hoje. Pedro Baptista chamou-o O Grito do Povo, marca que grava em título de jornal a indignação de milhões de portugueses, esgotados de um regime ditatorial que esmagou o país. Em 1973, preferiu dar-lhe o nome de Organização Comunista Marxista-Leninista Portuguesa (OCMLP). Nada que surpreendesse vindo de um deputado municipal independente, romancista e ensaísta, doutorado em Filosofia, que ao longo do seu trajeto político se demarcou pela liberdade de pensamento, não temendo rótulos, nem o de reacionário, muito menos o de revolucionário. Foi a ele que Rui Moreira endereçou o convite para ser o comissário geral das celebrações do bicentenário da Revolução Liberal do Porto. Entendeu-se porquê.

- Há quanto tempo está a preparar o bicentenário da Revolução Liberal de 1820?

Estamos a trabalhar no programa há cerca de dois anos. É evidente que, por mais antecedência que exista no planeamento, o ritmo de execução intensifica-se com a proximidade da data. Está a correr tudo bem, porque a equipa também é bastante boa. Além de contar com o apoio da estrutura da Cultura da Câmara Municipal do Porto, convidei comissários específicos para momentos-chave das comemorações, como o Prof. José Manuel Lopes Cordeiro, da Universidade do Minho, especialista em século XIX e na indústria portuense e nortenha, para comissário da exposição; e o Prof. Gaspar Martins Pereira, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, figura incontornável na historiografia portuense, para o congresso internacional.

- A gestão foi sempre tranquila?

Fiz uma gestão atenta, mas procurei intervir o quanto baste, acho que é isso que um comissário geral deve fazer. Mas o facto de a empresa municipal de cultura ter sido chumbada pelo Tribunal de Contas não deixou grande margem para responder ao boom cultural da cidade com a estrutura adequada. A organização das celebrações teve de adaptar-se a esse constrangimento, agora ultrapassado com a criação da Ágora [empresa municipal de cultura e desporto, que deriva da antiga Porto Lazer].

- Qual será o primeiro grande momento das celebrações?

A inauguração da Exposição "1820. Revolução Liberal do Porto", a 20 de fevereiro, na Casa do Infante. Deste momento, vai resultar o lançamento posterior de um livro da autoria do Prof. Lopes Cordeiro que, mais do que um catálogo que irá reunir uma série de documentos e peças históricas em exposição, é uma obra que retoma a verdade dos factos sobre este episódio histórico nacional. Depois, o grande Congresso Internacional "A Construção das Liberdades". promovido pela Universidade do Porto, a 14 de maio. Entretanto, nestes seis meses, até Julho, ocorrerão dezenas de eventos alusivos, aos mais variados níveis, num programa variado, rico e incisivo.

- Havia interpretações históricas que importava clarificar?

Sim. A historiografia lisboeta procurou minimizar e marginalizar o facto de a Revolução ter sido feita no Porto. Embora Lisboa tenha aderido posteriormente, tentou empalmar o processo várias vezes. O que disse a todos foi que tínhamos aqui uma oportunidade para falar com base na verdade dos factos, sem sermos dominados por pretensos consensos feitos pela História. Foram precisos 200 anos para finalmente se perspetivar a Revolução Liberal de 1820 a partir do seu lugar de origem.

- Que foi exatamente onde?

As operações políticas aconteceram no edifício da Câmara Municipal do Porto, que ficava localizado no centro, no enfiamento da atual Rua de Sampaio Bruno. Às 6 horas do dia 24 de agosto de 1820, os vereadores, os demais elementos da Câmara e juízes são convocados para proclamarem, a partir do Porto, o novo governo supremo do reino às 8 horas da manhã! O pronunciamento militar tinha decorrido horas antes, de madrugada, no Campo de Santo Ovídeo, hoje Praça da República.

- A Revolução Liberal de 1820 vincou a forma de ser portuense?

Acho que está mais relacionado com a dinâmica do lugar, do que propriamente com o ADN das suas gentes. Não sei por que tipo de determinação, mas o lugar sempre fez do Porto uma cidade especial, com uma forma de estar muito própria no contexto do país e do mundo. Não se trata de algo mágico, nem gnóstico, mas uma confluência de realidades sociais, económicas, culturais e as pessoas acabam por se inserir no processo histórico. Os portuenses não são diferentes por nascença, até porque a maioria das gentes do Porto, ontem e hoje, vieram de algum lugar e também por esse motivo a cidade foi sempre crescendo.

- Influenciou a resposta ao Cerco do Porto?

Foi determinante, porque a cidade ficou marcada pelo Vintismo. Depois sofreu a contrarrevolução miguelista e a brutalidade dos seus termos. Não sei até que ponto terá sido nesta fase que se criou o mito do Porto Liberal, que erradamente as forças miguelistas subestimaram, mas que as tropas liberais entenderam, quando no levantamento do Cerco do Porto, a 9 de julho de 1832, 'puxaram desses galões'. Aliás, esta ideia vai ser uma constante até ao revilharismo do século XX anti-salazarista, logo em 3 de fevereiro de 1927, uma revolução gorada contra a ditadura. Em abril de 1931, o General Sousa Dias faz uma proclamação ao povo do Porto na Revolta da Madeira, aludindo à sua idiossincrasia ideológica liberal. Vão ser resquícios disso que levam a que a candidatura do General Humberto Delgado se venha a centrar no Porto. Ou ainda os discursos de Mário Soares antes e depois do 25 de Abril em que, muitas vezes, sublinhava também essa característica.

- O Porto Liberal é mito?

Penso que é duas coisas: mito e bandeira. Acho que o povo do Porto é, de vez em quando, autenticamente insubmisso.

- Devia ser mais vezes?

Se for de vez em quando tem a vantagem de poder utilizar em seu proveito o efeito surpresa (ri).

- O que podemos aprender com a Revolução Liberal do Porto?

A Revolução Liberal foi o marco da fundação do Portugal moderno, baseado na cidadania, consolidada com a vitória do Cerco do Porto. Não nos esqueçamos que foi um século terrível, principalmente no início, quando ocorreram as invasões francesas e a tragédia da Ponte das Barcas. O sangue da Invicta adubou a modernidade do país. O programa de celebrações do bicentenário procura sobretudo deixar essa pedagogia de reflexão e não propriamente uma didática de comemoração.

- Em que medida?

Há várias coisas que devem ser pensadas. Quando vejo levantarem-se tantos problemas em relação ao retorno dos impostos dos portuenses para o Município, tenho a ideia de que sabemos muito bem gerar e gerir o nosso dinheiro. Logo a 24 de agosto de 1820 ou imediatamente no dia a seguir, a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino decidiu criar, no Porto, o Tesouro Nacional. Talvez a cidade do Porto deva ter neste país um peso maior do que aquele que tem como simples autarquia, cerceada por uma legislação que tenta fazer dos municípios entidades que não são de confiança. Um outro exemplo está relacionado com a reflexão sobre o sistema eleitoral vigente. Portugal já deveria ter tido a experiência dos círculos uninominais há muito tempo, até porque a Constituição Portuguesa o permite. Só não se sai do sistema proporcional de D'Hondt, não porque não seja melhor, mas porque o dos círculos uninominais - que admito que possa ter as suas fragilidades - colocaria em causa os atuais interesses instalados. O poder em Portugal é dominado pela inércia e tem uma incapacidade imensa para a inovação e para a autorreforma. Também o processo revolucionário de 1820 foi motivado pela necessidade de pôr cobro à fossilização da monarquia tradicional.

- A celebração do bicentenário envolve outras instituições?

A iniciativa é da Câmara do Porto, em parceria com diversas instituições da cidade, que nos apresentaram propostas autónomas, que foram acolhidas e incluídas no programa. Desde logo, a Universidade do Porto, na figura do Prof. Gaspar Martins Pereira; a Universidade Lusíada, em que tem um papel destacado o Prof. Vital Moreira, consultor das comemorações que, coadjuvado pelo Prof. José Domingues, está a preparar uma conferência internacional para o final de setembro focada no processo eleitoral. Além disso, a Universidade Lusófona também se associou através de vários colóquios, que vão decorrer em dependências municipais e na Junta de Freguesia do Bonfim; e ainda a Associação 31 de Janeiro e o Museu Militar do Porto, entre outras. O apoio da Câmara do Porto é materializado unicamente na cedência das instalações, à exceção do Congresso Internacional da Universidade do Porto e da Conferência Internacional da Universidade Lusíada, com quem foi estabelecido um protocolo de apoio.

- Como comenta o facto de a Assembleia da República não se ter associado?

Espanta-me que o Dr. Ferro Rodrigues tenha dito que não havia possibilidade de meios e apareça em eventos previstos para instituições de Lisboa, com o patrocínio da Assembleia da República. Na verdade, o nosso país, espanta-me cada vez mais... ou cada vez menos, porque já nada espanta...