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Revolução Liberal de 1820 pode servir de inspiração à reforma do projeto europeu

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Que futuro para a Europa, duzentos anos depois de 1820, convergiu para tema central da última sessão do ciclo Conversas Situadas, desenvolvido no âmbito das comemorações do bicentenário da Revolução Liberal. Sob a égide "Poder & Poderes" à luz de duas perspetivas, a do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, e a de Bernardino Soares, presidente da Câmara de Loures, o debate foi mote para uma reflexão sobre o projeto europeu e sobre até onde pode e deve ir a sua influência na soberania dos estados-nação. Uma Constituição Europeia, defendeu Rui Moreira, pode ser a solução.

A última conversa situada que decorreu no auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, integrada na programação da Feira do Livro, reuniu dois autarcas de espectros políticos diferentes, mas nem por isso divergentes naquela que foi a importância matricial da Revolução Liberal do Porto, em 1820.

Bernardino Soares, militante do PCP e ex-deputado da Assembleia da República, sublinhou um dos legados curiosos da Constituição de 1822 na cena política atual. "Em 1822, o rei só podia sair do país com autorização do Parlamento. A Constituição formulava-o do seguinte modo: o rei pode sair do país, mas isso significa abdicar". Ora "ainda hoje temos essa norma. O Presidente da República para se ausentar do país, qualquer que seja motivo, tem de pedir autorização à Assembleia da República. É uma ideia pitoresca, mas não é desprovida de sentido", observou.

Para o autarca de Loures que, na ponta final da conversa, foi instado pelo moderador Pedro Braga de Carvalho, deputado do PS na Assembleia Municipal do Porto, a responder se a Revolução Liberal poderia ter ocorrido noutra cidade do país, este momento histórico só poderia ter mesmo acontecido na Invicta. "Não só pelas suas características da cidade, como pelo papel [interventivo] da burguesia. Visto de fora, não me custa nada admitir isso", reforçou.

Rui Moreira concordou e disse que o espírito de 1820 subsiste. "A cidade mantém o espírito inconformado. É a cidade em que tudo se discute e em que o sentimento de pertença é diferente em relação ao da outra grande cidade portuguesa", comparou. "O Porto continua a ser uma cidade irresoluta. A cidade que discutiu o primeiro Palácio de Cristal, basta recordar os artigos de Ramalho Ortigão, em 'As Farpas'; que deitou abaixo o Palácio de Cristal no Estado Novo para criar o Pavilhão de Desportos; que agora o requalificou, já com o nome de Pavilhão Rosa Mota, designação que altura também foi contestada, e a que hoje junto um naming. No meio disto, ainda há quem diga que bom mesmo era destruir o pavilhão e voltar a edificar o antigo Palácio de Cristal", exemplificou o presidente da Câmara do Porto.

1820 e o poder de soberania

Além das considerações sobre 1820 e sobre a sua incontestável influência no presente, não fosse a Revolução Liberal do Porto o momento fundador da cidadania em Portugal, os oradores partilharam com o público, que preencheu bem a sala com o devido distanciamento, aquelas que são as suas reflexões sobre o poder nacional e as soberanias. Neste exercício sobre "Poder & Poderes", tema da sessão, a conversa acabou por desembocar nos poderes supranacionais, neste caso no poder da União Europeia sobre os estados-nação.

Para o presidente da Câmara de Loures "hoje o poder económico sobrepõe-se ao político", sobre o qual, diz, "há um fortíssimo condicionamento". Segundo o comunista, um desses exemplos reflete-se na "concentração forçada do sistema bancário" e na sua subjugação a diretrizes europeias. Há ainda mais um perigo à espreita, avisa Bernardino Soares. Esta inversão de poderes "é terreno fértil para linhas ideológicas e políticas que ameaçam o sistema democrático" com discursos populistas.

Ao desafio lançado pelo moderador a Rui Moreira para, por sua vez, comparar o valor do voto do cidadão de hoje com o voto do cidadão de 1820, o presidente da Câmara do Porto - subtraindo os condicionalismos que devem ser analisados "à luz da época", dado que as mulheres não votavam e só os letrados tinham esse direito hoje, felizmente, universal - declarou não ter dúvidas: "Se comparados os dois tempos, hoje os cidadãos de 1820 teriam mais poder do que os nossos eleitores".

Para o autarca, "ao longo dos últimos anos, abdicamos objetivamente de princípios da soberania que para 1820 eram incontentáveis", afirmou. E explicou porquê, introduzindo a Europa em cena. "Não se tenham dúvidas de que o Governo Português manda hoje menos nos destinos do país do que há 30 anos". O poder político, ajuizou, tem procurado ocultar esse facto, omitindo que trata apenas de "matérias de urgência" e deixa as estratégias de longo prazo para "conserto europeu".

Este sistema, continuou, contribui para o descrédito das instituições e para a própria alienação do eleitorado, que acaba por votar por protesto, mais do que por convicções em programas políticos. "O meu voto hoje tem menos influência para os destinos do país do que o dos meus pais depois do 25 de Abril", notou o edil. 

Projeto da Constituição Europeia: "fazer o 1820 da Europa"

Nesta senda, o autarca do Porto defendeu, já no término da sessão e na sequência de uma intervenção de José António Pinto Ribeiro, que mais valia a UE avançar definitivamente com uma Constituição Europeia. "Ficaria muito mais tranquilo com uma Constituição referendada. Assim conseguiria perceber algumas coisas que hoje não consigo. Até porque o que aconteceu é que nós abdicamos da nossa soberania sem a referendar, essa é que é essa", declarou. 

Fazer o "1820 da Europa" com a elaboração de um documento europeu norteador é uma ideia que agrada a Rui Moreira, mas não a Bernardino Soares. "Era a consagração da limitação da soberania dos Estados", contrapôs.

Não obstante, no curso do debate houve posições dos dois presidentes de câmara que convergiram, quando ambos consideraram que a Europa esteve mal na resposta à crise pandémica. "Havia esta ideia de ultrapassar o Estado-Nação com um certo federalismo, mas viu-se o Estado-Nação regressar com a Covid-19. Só houve solidariedade europeia quando cada país resolveu o seu próprio problema", analisou Bernardino Soares, que acrescentou duvidar dos méritos "de uma bazuca", pois "entre o deve e o haver" é preciso fazer contas, sustentou.

Também Rui Moreira criticou a atuação da Europa nos últimos meses. "O primeiro instinto nesta crise foi fechar fronteiras. Foi o salve-se quem poder", lamentou, enquanto narrou um episódio de um transportes de mercadorias para suporte no combate à Covid-19 que tinha como destino o Porto, mas que ficou retido em França, por aquele país alegar que estava numa situação mais grave e prioritária.

Agora que o apoio extraordinário, de muitos dígitos, está a ser gizado, o autarca aguarda que se invista na "reconstrução das cadeias de valor europeias" e no apoio às economias locais. "Acho mais importante que se invista aí os fundos do que em projetos megalómanos, que façam ressurgir o ?Complexo de Mafra'". Temendo que com o dinheiro da bazuca os portugueses estejam tentados "a ideias brilhantes, que não criam grande integração nacional", Rui Moreira defende que precisamos de soluções mais tradicionais do que inovadoras".

Por isso, retornou, defende o projeto de uma Constituição Europeia. "Gostaria que as coisas ficassem aí mais claras. Houve uma 'Vila-Francada' e ela recuou. Mas também acho que deve ser feito através de trabalho diplomático que penso que não tem sido feito", considerou o presidente da Câmara do Porto.

Soberania nacional versus soberania europeia

Entre os dois autarcas há, inevitavelmente, visões diferentes quanto à missão de uma Europa unida. "Europeísta convicto", Rui Moreira não se escusou, contudo, a apontar defeitos às instituições europeias, nomeadamente ao Parlamento Europeu.

"O Parlamento não manda na Europa, manda menos do que as nossas assembleias municipais mandam nas câmaras, porque não pode ter a iniciativa", referiu. O presidente da Câmara do Porto, que comparou o organismo a uma "Torre de Babel" e que chamou a atenção para um papel que diz ser "irrelevante" no contexto das decisões transfronteiriças, criticou, por isso, ser este o único órgão no seio da UE para o qual os europeus estão habilitados a votar.

"Devo dizer que sou um europeísta profundo. Ao criticar a forma como tem sido feita a integração e como tem sido feita a organização e o desenvolvimento da Europa, não estou a dizer que não quero [a Europa]. Eu quero!", sublinhou. "Se nós por exemplo neste momento histórico estivéssemos sozinhos e não tivéssemos, apesar de tudo, esta solidariedade europeia, nós estávamos desgraçados, provavelmente já se tinham apagado aqui as luzes", afirmou, aluindo ao facto de agora a Europa se ter recentrado e deixado o egoísmo que imperou no pico da pandemia.

"A questão aqui é como retomar isto e como fazer a Europa dos cidadãos. Para isso é preciso que os nossos sistemas políticos nacionais, dos velhos estados-nações, reconheçam a sua fragilidade e reconheçam que hoje, de facto, já não podem continuar a iludir os eleitores".

Uma sondagem de um jornal alemão indicava, há quatro anos, que entre cidadãos com menos de 40 anos, apenas 12% estariam dispostos a combater numa guerra em nome da Europa. Já se a mesma operação bélica fosse em nome da Alemanha, a percentagem subia além dos 50%, ilustrou Rui Moreira.

Do outro lado da barricada, o colega de painel Bernardino Soares conduziu o discurso noutro tom. "Temos com a Europa a relação que tínhamos com os ingleses há 200 anos. E por ironia do destino hoje os ingleses saíram", verificou.

Para o presidente da Câmara de Loures, que alertou para a tendência "maniqueísta" de catalogar as posições da CDU na Europa, "há regras europeias que nos espartilham". Defendendo não uma política de "fechamento" da Europa sobre a Europa, mas sim uma política de "cooperação", o autarca sustentou que "temos de alicerçar a política europeia entre estados soberanos" e que "o nosso país precisa diversificar mais as suas relações diplomáticas e económicas" tornando-nos menos dependentes de Bruxelas.

O voto como arma de defesa das gerações futuras

Nestas Conversas Situadas, Rui Moreira refletiu ainda sobre a pertinência de reavaliar os tempos dos ciclos democráticos. "Hoje vivemos um problema de tempo, que a nós, por exemplo, que somos políticos no ativo, nos aflige permanentemente. Basta perceber que temos mandatos de quatro anos. Quando lá chegamos, os primeiros seis meses não podemos fazer nada, no último ano também já não podemos fazer nada, porque se fizermos alguma coisa de bom dizem que é eleitoralismo, se fizermos mal perdemos as eleições. Portanto, temos ali dois anos e meio para governar, com formas de contratação pública que não nos permitem quase fazer nada".

Além disso, prosseguiu, "outra matéria que aflige muito os cidadãos hoje é o futuro. Por norma a democracia foi sempre a ditadura dos vivos, a ditadura dos que estão cá, ou seja, esquecendo sempre o futuro. (...) Hoje a situação alterou-se profundamente, muito por causa das questões do planeta, das questões do ambiente ou da ecologia".

Segundo o presidente da Câmara do Porto, "o fenómeno Greta" obriga todos a pensar. "De alguma maneira condiciona a ação política e a ação soberana, já não em função do eleitor que vota em nós, mas daqueles que ainda não estão cá e que ainda não podem votar, mas cujo os direitos nós subitamente começamos a identificar".

Por esse motivo, defende, é preciso repensar os ciclos eleitorais, repensar a dimensão "e não termos receio de uma integração europeia, mas em que nós possamos votar, em que haja um presidente da Europa ou um Parlamento Europeu mas com poder efetivo", concluiu.