Sociedade

Reabilitam casas e também vidas por dentro e por fora

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Por fora, é uma casa térrea, antiga, localizada em Lordelo do Ouro, comum a tantas outras. Por dentro, é a casa de Alice Pinto, que rejuvenesceu graças à intervenção dos voluntários da Associação Just a Change. Uma simbiose entre novos e velhos que dá cor ao que já não tinha. Na última edição do Jornal Porto. acompanhamos esta obra, num artigo que fica aqui reproduzido na generalidade.

Chegaram em novembro de 2017, ao abrigo do programa Porto Amigo, para fazerem obras de recuperação em casas de pessoas com mais de 60 anos e em situação de comprovada carência económica, ou em residências de cidadãos com grau de incapacidade igual ou superior a 60 por cento, que vivam em habitação não municipal. Na casa da sorridente tia Alice, como gosta de ser tratada, os voluntários do Just a Change, supervisionados pelo mestre de obras, Paulo Soares, fizeram uma remodelação completa em dois meses.

No "caderno de encargos", a listagem de intervenções era diversa: resolver infiltrações em algumas divisórias; substituir caleiras; rebocar a dispensa "de cima a baixo". O problema maior era o da casa de banho, localizada no exterior da residência, sem isolamento térmico e com o teto a cair. Não admira, por isso, que a primeira ideia de Alice, que ali vive há 45 anos, fosse a construção da casa de banho no lugar da dispensa, mas tal não foi possível porque, como explicou Paulo Soares, "obrigava a alterar toda a rede de canalização e esgotos".

Assim, a solução consistiu na "construção de uma antecâmara que possibilitou a integração de divisão no interior da casa". Para esse fim, substituíram a porta da casa de banho e repararam o teto; trocaram a pequena janela, que deixava entrar o frio, por outra com maior proteção; na antecâmara, colocaram uma porta e aplicaram um teto falso com placas térmicas; e diminuíram a altura dos degraus que fazem a ligação entre esta divisão e o interior da casa, para facilitar a mobilidade da moradora de 83 anos.

A intervenção rondou os quatro mil euros, considerando a mão-de-obra, os materiais e a logística. Para que a cadência da obra não esmorecesse, foram recrutados 100 voluntários entre estudantes universitários, destes 20 coordenadores, responsáveis por "garantir que toda a gente está a trabalhar, que vem ao turno e está motivada", atenta Francisco Aguiar, estudante de Engenharia Civil, na FEUP, coordenador de uma das equipas. Detalhadamente, para cada projeto existem 20 turnos por semana, cada um composto por cinco voluntários, que podem optar entre os horários da manhã e da tarde. Com esta metodologia assegura-se a participação de 50 voluntários entre segunda e sexta-feira, renovando-se o ciclo de duas em duas semanas.

Este planeamento prévio não assustou o jovem coordenador de 21 anos, que vê nas redes sociais um bom aliado ao seu trabalho. "Temos sempre um grupo no Facebook e outro no Whatsapp onde vamos falando e, quando é preciso substituir alguém de última hora, resolve-se por aí. Às vezes vem o irmão, o amigo, a namorada e depois até gostam disto e inscrevem-se", acrescenta.

Para Paulo Soares, é gratificante observar a evolução de cada um deles. "A maior parte, senão mesmo todos os voluntários, chegam sem qualquer experiência em obra, mas nada mais fácil do que pôr a mão na massa", sublinha. Até porque, mesmo que não saia bem à primeira, "mentalizam-se que são capazes e corrigem". Entre as atividades que mais gostam de executar, Leonor Aroso, estudante de Direito na Universidade Católica, refere "pintar", colhendo a concordância da aveirense Carolina Guerra, que está no Porto a estudar Arquitetura. Pelo contrário, Francisco assinala que a parte mais difícil "é a aplicação das massas". Já para o mestre-de-obras é unívoco que "todos gostam de destruir", expõe entre risos.

Neste ambiente de boa disposição e camaradagem, Catarina Torres, estudante de Biologia, explica porque esta foi a terceira experiência em que participou. "O contacto que proporciona com pessoas tão diferentes não seria possível acontecer de outra forma".

Com a beneficiária, a relação também foi sempre saudável. "A Dona Alice é uma senhora muito afável e de espírito jovem", diz o mestre Paulo, que não deixa de constatar que, no arranque de cada projeto, existe um período de adaptação, justificado pelo reavivar de memórias passadas, ou "porque duvidam da capacidade dos universitários para executar as obras". Certo é que com a tia Alice a confiança conquistou-se rapidamente. "Ao fim de uma semana, passámos a ser quase uma família", atesta.

As mostras de carinho são evidentes de parte a parte. A começar pelo facto de a tia Alice ter passado o Natal em França, onde reside a única irmã que tem viva, e só ter regressado em janeiro, com a casa renovada. Em momento algum hesitou entregar a chave do seu domicílio aos voluntários; antes mesmo de viajar, deixou no hall da entrada um postal de Natal a felicitar todo o grupo. Mais ainda, enquanto as obras decorriam, dava as boas-vindas numa folha de papel A4. Por seu turno, quando a intervenção se concluiu ficou um bilhete colado no armário da cozinha com a seguinte mensagem: "Esperamos que a obra esteja do seu agrado e agradecemos toda a atenção e carinho que recebemos da sua parte". Além de que, não esquece a tia Alice, no regresso a casa foi presenteada "com balõezinhos".

Na verdade, o impacto social do projeto não se circunscreve aos beneficiários do Porto Amigo. Como vinca Simão Oom, diretor de operações do Just a Change, na casa do senhor Mário Lapa, o beneficiário antecessor de Alice Pinto, "o envolvimento da comunidade", tanto dos vizinhos, como do café que o morador frequentava, onde inclusive passaram a almoçar todos juntos, contribuiu para o reforço da união do grupo. Nesta casa, o cenário não foi diferente.

Mário Lapa mora em Campanhã. Alice Pinto vive em Lordelo do Ouro. Concluídas estas duas obras, os voluntários já avançaram para o terceiro desafio, no Bonfim. Aos futuros beneficiários, Alice deixou uma mensagem: "Merecem toda a confiança. Espero que lhes abram as portas de par em par como eu fiz, tanto da minha casa como do meu coração". Às palavras somam-se os gestos. Na despedida, reúnem-se para um lanche e, sempre que se ouve o toque da campainha, mais alguém entra. É inverno, começa a entardecer lá fora, mas nesta casa térrea, comum a tantas outras na cidade, a luz não se apaga.

Just a Change, a pequena mudança que faz a diferença

O novo protocolo do Porto Amigo foi celebrado entre a Câmara do Porto, promotora do projeto, a Fundação Manuel António da Mota, o GAS Porto e o Just a Change. O objetivo passa agora por chegar às 100 casas reabilitadas em quatro anos, sendo que no processo de sinalização contam com o envolvimento das juntas de freguesia.

A associação nasceu em Lisboa, em 2010, pela iniciativa de dois amigos, Lourenço Brito e António Bello, que decidiram ir para o Chiado tocar e cantar, para "ganhar uns trocos" para uma causa social. Das primeiras obras, feitas timidamente, às intervenções contínuas em habitações de Lisboa e à organização de campos intensivos em zonas rurais passaram poucos anos. Foi então que, em 2015, um dos fundadores arriscou dedicar-se a tempo inteiro ao projeto. Atrás dele, outros elementos se seguiram, entre os quais Simão.

Modelo de financiamento assenta em três pilares

Atualmente, constata o diretor de operações, "a estrutura é o nosso maior custo. Temos oito pessoas a trabalhar a tempo inteiro, incluindo três mestres-de-obras".

No Porto, o Just a Change recebe uma verba anual de 30 mil euros, da Fundação Manuel António da Mota. Para além disso, a mesma entidade patrocinou 15 mil euros para o desenvolvimento do projeto na cidade. Quando cá chegaram tinham reservado 12 mil euros do financiamento da Gulbenkian. E contam ainda com os fundos comunitários do programa Portugal Inovação Social, que multiplica o investimento feito na região Norte para um valor de 110 mil euros a três anos.

O caminho para a sustentabilidade é trilhado ainda sob mais duas formas: através do acolhimento de voluntários internacionais, em parceria com a Impact Trip (na casa de Alice Pinto, receberam voluntários australianos); e por via da organização de teambuildings, "uma importante fonte de receita", admite o dirigente.