Economia

"Miragens" podem impedir Portugal de aproveitar "grande oportunidade", avisa Rui Moreira

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É urgente existir um pensamento tático e estratégico para a aplicação do dinheiro da "bazuca" europeia de resposta à crise provocada pela pandemia de Covid-19, salientou o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, numa intervenção realizada na conferência "Levar Portugal a Bom Porto", promovida para assinalar os 50 anos da SEDES - Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, em que foram abordados os desafios de futuro que se apresentam ao país.

No arranque da conferência que decorreu ontem no Palácio da Bolsa, Rui Moreira começou por notar que este é o momento para "discutir o país, o rumo, a rota a seguir". E, dirigindo-se diretamente ao professor António Costa Silva, autor do Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 e também orador na sessão, deixou elogios ao ato de "cidadania e grande coragem" cuja reflexão resultou nesse documento: "Em nome pessoal e da cidade do Porto, quero agradecer-lhe por aquilo que fez".

Contudo, Rui Moreira não deixou de assumir as suas divergências em relação a este plano orientador do país para a próxima década. "É bom que exista uma visão transversal. Aprecio o trabalho que fez, independentemente de concordar com algumas coisas e com outras não. Estão-nos a pôr à frente dos olhos uma faneca que é muito grande. Não quero ser como um certo animal que vai sempre atrás da cenoura", ironizou o autarca: "Dizem que nos disponibilizam uma bazuca - eu não gosto do termo", acrescentou, referindo-se aos 750 mil milhões de euros da resposta europeia à crise.

"Podemos olhar à situação que vivemos de duas formas diferentes. Caiu em cima de nós o dilúvio e temos de encontrar formas de não nos afogarmos. Ou, então, temos uma hipótese quase bíblica de ver o que nos sucedeu - não consigo pensar em nada que tenha vivido que tenha tanto de bíblico -, uma oportunidade para nos redimirmos do que não temos feito bem, de aproveitar esta apneia para nos tornarmos melhores", comparou o presidente da Câmara do Porto, resumindo: "Temos de tomar medidas rápidas e de fazer ajustamentos".

Os recursos que vão ser disponibilizados ao país representam, na opinião de Rui Moreira, "um momento único, provavelmente irreplicável, para resolver esta situação". Para tal, é necessária "a prudência de não nos deixar encantar pela miragem, porque pode-nos levar ao sítio mais profundo do deserto".

Evitar a ilusão dos "projetos luminosos"

Recuperando uma analogia que já tinha aplicado noutras ocasiões, o autarca alertou para a necessidade de evitar o "complexo do Convento de Mafra". "Foi construído com o ouro do Brasil, que assim se esgotou até ao terramoto. Foi a mesma coisa com o incenso com a Índia. Gostaria que Portugal não caísse na tentação de dizer que temos grandes projetos. Corremos o risco de cair, novamente, na ilusão de que vamos ter um, ou vários, projetos luminosos. Não há projetos luminosos, há um pensamento estratégico", vincou.

Nesse âmbito, mereceu destaque na intervenção de Rui Moreira a resiliência das empresas na região Norte. "Apesar de tudo, nesta região, houve empresas que foram capazes de sobreviver, manter emprego e investir. Mas porque não foram capazes de crescer? Somos menos do que os outros? Foi porque o sistema financeiro desacompanhou as empresas. Porque não fomos capazes de reduzir as externalidades. Não fomos capazes de recapitalizar as empresas. Não fomos capazes de ser mais eficientes", assinalou.

"Deixámos de ser uma potência colonial - apesar de nós, aqui no Porto, ainda nos sentirmos colonizados. Não somos um país que possa pensar exclusivamente nos serviços. Mas nós não queremos explorar os nossos recursos. Não queremos petróleo, não queremos eucaliptos ou celuloses, não queremos lítio. Esta é a realidade deste Portugal pequeno, no setor primário: as riquezas que temos, não as queremos explorar", lamentou Rui Moreira.

"Se, de facto, vem aí uma bazuca, temos um momento único, provavelmente irreplicável, para resolver esta situação. Ou, então, vamos ter um conjunto de convulsões sociais que esta crise, hoje, convoca. A ideia de que nós, portugueses, estamos a salvo de perturbações, incómodos, é falsa. Vai haver o momento em que vamos ser confrontados, se não formos capazes de ter um sonho, uma ideia, um rumo, uma estratégia", frisou ainda o presidente da Câmara do Porto, avisando que há "extremos que se tocam": "Objetivamente, o princípio da liberdade é hoje muito menos popular do que era há uns anos. Por isso precisamos de fazer alguma coisa: utilizar esta dificuldade, este momento de rotura, esta apneia, para sair daqui".

É necessário "ir mais além", reiterou Rui Moreira, notando que "isso só se faz através da economia". "Não podemos tomar o ponto onde queremos chegar como uma estratégia. Não podemos dizer: queremos um estado social mais forte. Tal só é possível se a economia o permitir, se a sociedade o tolerar, se formos capazes de convencer todos que há princípios fundamentais, como a redistribuição. A redistribuição só funciona se houver algo para redistribuir. Mas cada vez há menos para redistribuir", assinalou.

Também António Costa Silva, autor do Plano que elaborou a convite do primeiro-ministro, António Costa, alinhou nas observações do autarca. Face à "quantidade de recursos que vão chegar, não podemos repetir os erros do passado" ou corre-se o risco de "outra vez bater com a cabeça na parede". Na ótica do gestor, é preciso "acelerar as decisões", ousar fazer diferente e acabar com "a cultura burocrática" da Administração Pública que, diz, age "na defensiva quando as empresas interagem" com ela. Um balcão único para as empresas evitaria "o jogo do empurra que leva os projetos a perderem-se", defende.

A "anestesia" europeia

Lançando um olhar para o que foram os "últimos 20 anos de desenvolvimento do país", o presidente da Câmara do Porto constatou que, "com raras exceções - saúde, mortalidade infantil, acesso à educação - os sonhos que nos eram anunciados não foram concretizados".

"Não conseguimos aproveitar aquilo que era o anúncio de uma convergência com a União Europeia, com os nossos vizinhos. Haverá muitas razões, mas a verdade é que nós, endemicamente, não conseguimos convergir. Seria muito fácil imputá-lo à governação, a este ou àquele. Não interessa fazer imputações", afirmou Rui Moreira, sublinhando que "tudo o que veio da Europa foi mais usado como anestesia do que como incentivo à mudança. No concerto da Europa tínhamos um tempo para os treinos e um tempo para competir. E, na competição, temos vindo a perder lugares sucessivamente. O alargamento da Europa a Leste aumentou as nossas dificuldades".

Tal deve-se, na opinião do autarca, ao facto de não ter existido uma estratégia clara na adesão à União Europeia: "Aderimos porque era o que nos restava. Não tivemos domínio da estratégia. Tivemos a boa tática, a de conseguir recursos para Portugal, para cobrir algumas carências, mas não quisemos resolver as deficiências ancestrais. Portugal não foi capaz de ter conceito estratégico", indicou.

As circunstâncias atuais representam, assim, "uma grande oportunidade". A dependência de outros países é cada vez mais posta em causa, realçou Rui Moreira: "A Europa está preocupada com as cadeias de valores. A ideia de deslocalizar fornecimento para longe tem riscos. Olhe-se para o ano 2011: ocorreram duas circunstâncias, em dois países muito distantes de nós. Um tsunami no Japão e grandes inundações na Tailândia, que tiveram implicações em vários setores industriais. Logo nessa altura, percebeu-se que a deslocalização estratégica não pode deixar-nos dependentes de um fornecedor".

"Temos de ser capazes de congregar vontades e pensar estrategicamente no desenvolvimento do país. Ter boas condições de trabalho, ter um estado social forte, tudo isto é o ponto de chegada. Mas não é tática, nem estratégia. Se não acertarmos desta vez, daqui a cinco ou seis anos vamos voltar a estar aqui sentados, a lamentar outra oportunidade desperdiçada", terminou.